sábado, janeiro 21, 2017

O espelho do príncipe

Alexandra [Grace Kelly] e Albert [Alec Guiness] na cena da varanda: depois de todo o fair play com o desamor de Alexandra (que uma cultura de abnegação lhe dá com naturalidade), Albert confronta-a com a realidade. Esta é a base do serviço da realeza; a majestade de que é revestida é um verniz protetor e não mistificador.

O filme The Swan [1956, de Charles Vidor] com Alec Guiness e Grace Kelly, sobretudo o sublime diálogo entre ambos na varanda (cena final), é um dos melhores retratos humanos da instituição monárquica tal como ela foi recriada na Europa contemporânea.

A metáfora do cisne, aí usada para descrever a condição do monarca e dos seus familiares também investidos das funções dinásticas, coloca a importante questão de saber se tal condição e funções são um “sacrifício” e se este “desumaniza” os seus protagonistas (por lhes exigir a renúncia à “vida vulgar”): parece-me claro que é, de facto, um sacrifício e que este é inseparável da própria missão da realeza (como aliás acontece em muitas outras missões que os seres humanos se podem atribuir ou aceitar que lhes atribuam), mas é abusivo dizer-se que desumaniza por princípio – porque pressuporia que ser humano se limita a ser viver a tal “vida vulgar” (e é defensável que o é na maior parte do tempo).

Mas, no diálogo referido, Alec Guiness (o Crown Prince do filme) não diz que o cisne, no fundo e em privado (nomeadamente entre os seus ou na forma como ele e a sua Princess sempre partilhariam experiências como aquelas que nos foram dadas ver no filme), não seja um ganso – que “canta”, desajeitado, em privado e na experiência da morte, mas não em público enquanto cisne.

O drama da falecida princesa [Diana] de Gales foi que o sacrifício parecia não ser assumido e o que a realeza não comporta, precisamente, é uma posição dúbia nesse campo – ou se está no lago ou se está na margem (a posição demagógica de dizer-se que quer aproximar-se da margem ou mesmo estar na margem como cisne é pretender que se é cisne por natureza, em si mesmo; ora, como é claro no diálogo do filme, ninguém é realmente mais que ganso – o deslizar, a brancura e a majestade são atributos do lago, não do cisne individual, e que se degradam na margem).

É então o lago (a majestade – diferente de pompa – da realeza) uma hipocrisia? Pode ser se o sacrifício não estiver interiorizado pelos protagonistas, tornando-se assim vulneráveis ao chamamento e à adulação das margens; a educação dos príncipes e infantes deveria sempre orientá-los (e julgo que em geral orienta) para uma consciência aguda da natureza da sua condição e funções, devendo eles optar solenemente pela margem ou pelo lago.

Resta outra questão: é necessário à instituição monárquica este paradigma do cisne e do lago (que não foi sempre o seu)? A minha convicção pessoal é que esse paradigma (diferente do do rei pastor, do rei guerreiro ou do rei déspota iluminado) é uma recriação (ou reinvenção) histórica da instituição que a adaptou a uma função constitucional moderadora e de partilha da soberania e que a preserva melhor do desgaste quotidiano. Criou também, dentro do poder político constituído, um género de reserva humana que transporta um importante capital cultural familiar e que tem com a opinião pública uma relação mediada pela sua estrutura simbólica que, pela sua continuidade, tem uma oportunidade única de aperfeiçoar-se por constante reelaboração. Isso permite-lhe corrigir permanentemente a sua relação com a opinião pública e, nela, fortalecer a base de mútua confiança que só na realeza é, em alto grau, simultaneamente política e humana.

Uma última questão, bem importante, é a de algumas pessoas acharem que a vida privada do monarca e dos seus familiares deve ser de algum modo “exemplar”; aqui há que desfazer este terrível mal-entendido, de que se servem – não sem tremenda hipocrisia – muitos anti-monárquicos: ninguém deve saber da vida privada do monarca e dos seus familiares e muito menos se deve cultivar a ideia da “família real” como família-modelo seja do que for.

Essa rigorosa privacidade é, aliás, condição do que aqui escrevi acerca do lago em que se move a instituição: essa majestade é eminentemente política e simbólica (entre a realeza e os súbditos) e não tem nenhum carácter de ideal comportamental privado. É evidente que podemos preferir príncipes virtuosos – e muitos sê-lo-ão –, mas é absurdo exigir que o sejam necessariamente; isso seria um peso que nenhuma instituição aguentaria...


[Com o título Cisnes que são gansos, ou a condição da realeza, esta nota foi publicada na revista Real n.º 49-50 (Nov. 2001-Nov. 2002), p. 22.]