sábado, dezembro 31, 2016

Um perigoso amontoado de sofismas

Notas sobre Trade and Development Report, 2016: StructuralTransformation For Inclusive and Sustainable Growth, Nova Iorque e Genebra: United Nations Conference on Trade and Development (UNCTAD), 2016 [215 p.].

so·fis·ma substantivo masculino
1. Argumento capcioso com que se pretende
enganar ou fazer calar o adversário.
2. [Popular]   [Popular]  Engano; logro.
(Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)
Este relatório tem duas partes, uma de diagnóstico e outra de propostas. É um exercício que se pretende legitimador do abandono do paradigma de uma economia de mercado pura a nível mundial a favor do intervencionismo, nomeadamente por meio do “regresso” às chamadas “políticas industriais” dos Estados. Obviamente, o paradigma que se pretende pôr em xeque nunca teve a vigência que se lhe atribui, tal como as políticas a que se propõe um “regresso” nunca foram totalmente abandonadas. Por outro lado, as propostas do relatório assentam em asserções e relações de causa-efeito que deixam muito a desejar em termos tanto lógicos quanto empíricos.

Um dos graves problemas deste texto é a forma como trata a política monetária. Aparentemente, os efeitos das opções de política monetária até não são esquecidos. No retrato da situação económica global, no qual se destaca o crescimento anémico um pouco por todo o lado, atribui-se os problemas dos Estados Unidos da América (EUA) e da União Europeia (UE), respetivamente, ao “dólar forte” e à “timidez” da política do Banco Central Europeu (BCE); num contexto em que, nos EUA, se praticou desde 2008 uma política agressiva de quantitative easing (QE), tal como no Reino Unido, e em que na UE a autoridade monetária usa mecanismos não ortodoxos de monetarização das dívidas públicas e dos passivos bancários – com juros historicamente baixos dos dois lados do Atlântico, tal como no Japão –, não se vê que maior arrojo se propõe nesta área. Mas estas considerações são também contraditórias com a responsabilidade que o relatório corretamente imputa às políticas de juros baixos e de QE dos últimos anos no crescimento da dívida tanto pública como corporativa nos países desenvolvidos. Se estas políticas têm tido essas consequências, como é que maior arrojo pode ser uma solução? Claramente, quis-se incorporar no relatório esta menção crítica às políticas monetárias, mas sem se atentar na contradição que isso implica com a sugestão de (ainda) menos timidez e restrição nas opções dos bancos centrais. Aliás, as propostas da UNCTAD, que referiremos, só poderão ser operacionalizadas com políticas monetárias expansionistas que estão também em contradição com a menção referida às consequências da política monetária dos últimos anos nos países desenvolvidos. O prisma monetário não é, pois, o forte do diagnóstico deste relatório. O efeito da política monetária é decorativo neste texto, cuja abordagem tem semelhanças metodológicas com a dos proponentes (e praticantes) do modelo do real business cycle (RBC), que desconsideram a relevância da política monetária e se apegam aos conjuntos de dados “empíricos” que tratam com métodos econométricos de validade duvidosa (quanto a este assunto, ver Paul Romer, «The Trouble With Macroeconomics», Set. 2016).

O verdadeiro problema económico, segundo os autores da UNCTAD, é a “fraca procura” global que se deve à estagnação dos salários reais, o que impede um maior crescimento económico (veja-se logo na p. III, 5.º parágrafo). A “procura” é vista como um agregado quantitativo independente da qualidade da “oferta” ou da sua adequação às necessidades ou preferências dos consumidores. Deste modo, o facto de os preços não subirem na proporção que alegadamente viabilizaria um “surto industrial” nos países onde os autores do relatório gostariam de o ver acontecer pode ser imputado, quantitativamente, a uma “procura” (de quê?) que estes economistas sabem que deveria ser mais alta. O problema dos salários reais – que o relatório não consegue mostrar de modo convincente que não tenham subido (sobretudo nos países em desenvolvimento) – é entendido com o mesmo sofisma da “fraca procura”. Estes salários-que-deveriam-ser-mais-altos não o são porque, no seu entender, a circulação global de capitais, por um lado, se orientou para remunerar os acionistas e não os trabalhadores dos países onde fez chover investimento e, por outro lado, escolheu apostar em atividades de fraco valor acrescentado, não favorecendo a panaceia dos surtos industrializadores nesses países nem a afluência salarial que a nutrisse localmente.

[Continua]

sexta-feira, dezembro 23, 2016

O que se sabe do Natal, nascimento de Jesus


[Grão de Trigo, Dez. 2011]

A palavra «Natal» refere-se à festa da natividade (isto é, nascimento) de Cristo.

O dia 25 de Dezembro era, no século IV da nossa era, assinalado como o dia do solstício de inverno, celebrado na antiguidade como data do nascimento dos deuses Mitras e Sol Invictus. No calendário juliano, o solstício calhava a 6 de Janeiro, quando era celebrado o aniversário do deus egípcio Osíris em Alexandria. Por volta do ano 300 da nossa era, o 6 de Janeiro tornara-se também no Oriente a data de celebração da Epifania, uma festa sempre intimamente relacionada com o Natal.

A mais antiga menção ao 25 de Dezembro como dia de Natal (nascimento de Cristo) é no calendário Filocaliano de 354, parte do qual reflecte o que era a prática da Igreja em Roma em 336. A celebração do aniversário de Cristo não era generalizada antes de século IV; de facto, ainda em pleno século V, o antigo leccionário arménio de Jerusalém comemorava Tiago e David a 25 de Dezembro, fazendo notar que «noutras cidades é celebrado nesta data o nascimento de Cristo». Quando celebrado o Natal, o tema da festividade era a Encarnação e as partes das Escrituras então lidas não se confinavam às narrativas sobre o nascimento ou a infância de Jesus. A Lucas 2:1-14 e Mateus 1:18-25 eram acrescentados não só João 1:1-8, mas também, por exemplo, Tito 2:11-14.

O ano do nascimento de Jesus Cristo é difícil de determinar. O recenseamento de Quirino, governador romano da Síria, referido em Lucas 2:1-5, é datado por Josefo como ocorrido entre os anos 6 e 7 da nossa era, além de que não terá abrangido toda a população do Império Romano (como diz Lucas 2:1), também não terá sido contemporâneo do governo de Herodes (pois não foi durante o seu reinado que Quirino foi governador) e não teria requerido a presença de José (e muito menos de Maria) em Belém da Judeia por ser a sua terra natal. Apesar de Lucas 3:1-2 não sugerir nenhum ano exacto, a passagem parece apontar para uma data entre 27 e 29 da nossa era como a do baptismo de Jesus (com cerca de 30 anos) por João Baptista (Lucas 3:23). De acordo com esta datação, Jesus teria nascido entre 4 e 1 antes da nossa era. A altura do ano não é indicada em parte alguma da Escritura.

O local de nascimento de Jesus também tem sido problemática. Se só tivéssemos os evangelhos segundo Marcos e João, poderíamos assumir que havia sido em Nazaré (Marcos 1:9; João 1:45-46; Lucas 2:4, 39). Em Lucas 2:1-20 é contada a história do nascimento em Belém e Mateus 2:1 segue uma tradição similar, embora introduza não uma narrativa do nascimento, mas uma narrativa da infância, pois a história dos Magos implica que Jesus já teria cerca de dois anos de idade quando eles chegaram (Mateus 2:16).

O local exacto do nascimento em Belém também é duvidoso. A manjedoura de Lucas 2:7 podia situar-se numa tenda quase sem cobertura ou num local de alimentação de animais ao ar livre, podendo, por seu lado, a «hospedaria» referida ser um quintal com cercas à sua volta. Curiosamente, a presença no local de um burro e de um boi ou vaca não nos chega pelo Novo Testamento, mas sim através da imagem de Isaías 1:3, que foi posteriormente aproveitada. Outra tradição dos primeiros séculos do cristianismo, registada no apócrifo do proto-evangelho de Tiago do século II (18-21) e por Justino, fala de uma gruta como o local de nascimento de Jesus. Essa gruta teria sido alegadamente mostrada a Orígenes por volta do ano 246 e sobre esse local, cerca do ano 333, o imperador Constantino teria mandado construir uma basílica, que foi substituída pelo imperador Justiniano por volta de 531. Ainda existente, a gruta tem no seu interior uma pedra que a lenda conta ter servido de manjedoura. De facto, nas primeiras liturgias do Natal tanto a manjedoura como os campos dos pastores das imediações são referidos – mas mais nos festejos da Epifania do que na celebração propriamente dita do nascimento de Jesus Cristo.


Traduzido e adaptado de A. R. C. Leany, s.v. «Christmas», in The Oxford Companion to the Bible (ed. Bruce M. Metzger e Michael D. Coogan), Nova Iorque e Oxford: Oxford University Press, 1993, pp. 112-113.


OUTROS TEXTOS SOBRE O NATAL, AQUI.