segunda-feira, setembro 26, 2016

Em defesa dos mal amados distritos

No ano passado entrou em vigor uma nova versão das NUTS (Nomenclatura de Unidades Territoriais para Fins Estatísticos) que estava já delineada desde 2013 (daí serem denominadas NUTS 2013). Desde o início do presente século é, pelo menos, a terceira versão desta nova divisão do território que veio substituir os velhos distritos instituídos pela reforma administrativa de Mousinho da Silveira, só corrigida em 1930 com o desdobramento do antigo e extenso distrito de Lisboa nos "novos" distritos de Lisboa e Setúbal.


Na versão de 2001/2002 das NUTS III, era bem visível a norte o desmembramento dos velhos distritos (mapa à esquerda).

As alterações das NUTS III ora são para retalhar o País de forma a colocar determinadas regiões abaixo das médias estatísticas europeias, mantendo-as candidatas a fundos comunitários, ora, alegadamente, para cumprir critérios da União Europeia quanto à uniformidade populacional de cada unidade territorial. Desta vez, as NUTS III correspondem também às entidades ou comunidades intermunicipais instituídas pela Lei n.º 75/2013 de 12 de setembro, artigo 80.º e ss. (Diário da República 1.ª série n.º 176, 12.09.2013) – entidades cuja constituição compete às câmaras municipais (artigo 80.º-§1), mas que é o governo central que define e estabelece em lei (!). O certo é que essas alterações das NUTS III criam instabilidade numa divisão intermédia do território que era suposto ser expressão de uma realidade regional que, na opinião dos seus detractores, os distritos desfiguravam. Por outro lado, esta frequente alteração das NUTS III cria descontinuidades nas séries estatísticas cuja maior fiabilidade e rigor são, também alegadamente, a sua razão de ser.

Na nova versão das NUTS III para o território continental, não deixa de ser surpreendente, na sua configuração, o indisfarçável reaparecimento dos velhos distritos:


A NUTS III "Alto Trás-os-Montes" voltou a dividir-se naquilo que eram exatamente as partes norte dos distritos de Vila Real e Bragança. A sul do Douro, da cacofonia instituída em 2001, reemergem agora, quase reconstituídos, os antigos limites dos distritos da Guarda, Viseu, Coimbra e Castelo Branco. No vale do Tejo e mais a sul, a artificialidade da divisão de 2001 era mais notória, pois era mais clara a proximidade com a antiga divisão distrital, mais município para cima, menos município para baixo. Aqui, afinal, a reforma de Mousinho parecia impor menos uma "artificialidade administrativa".

A resistência surda de uns quantos aos distritos de Mousinho da Silveira é antiga em Portugal. No início do século XX houve vários candidatos a descobridores das "regiões naturais" do território continental (de que as nunca concretizadas "províncias" do Estado Novo foram uma das versões). Os estatísticos atuais, criadores das NUTS, parecem ser herdeiros desse etno-ecologismo administrativo e fantasioso, a que juntam o ideal da uniformidade populacional (numérica) - que não passa de outra miragem e alimentará inúmeras futuras alterações deste recorte do território.

Como se pode ver no mapa de baixo, aquando da sua instituição (ou perto disso, ainda em 1864), os distritos contemplavam uma diversidade de ocupação populacional do território expressa em diferenças acentuadas de densidade populacional:


Os distritos do interior sempre foram, claramente, menos densamente povoados do que os do litoral. Não é verdade, pois, que os distritos tenham sido "ultrapassados" por uma realidade em movimento. Eles nunca quiseram ser expressão de unidades populacionais aproximadas (e muito menos, obviamente, de artificiais unidades culturais regionais). A sua lógica sempre foi a de criar uma estrutura administrativa intermédia, dependente do poder central de um pequeno país, mas bem articulada com uma estrutura municipal vigorosa e, essa sim, ligada a identidades locais genuínas. Aliás, a reforma do século XIX que reduziu o número de concelhos (de 816 em 1827 para 351 em 1836) pretendia, entre outras coisas, criar um poder local viável e capaz de atrair e gerir competências alargadas.

Aos distritos, independentemente das flutuações populacionais, ficava reservada uma função variada e fundamental: distribuir com uniformidade territorial (e não estritamente populacional) a presença do poder central através de governos civis; promover uma rede intermédia de cidades (as capitais de distrito), dotando-as de infraestruturas e instituições especializadas que dificilmente poderiam estar disseminadas a nível municipal (forças de ordem, arquivos, tribunais, escolas médias, etc.); e, não menos importante, uma base territorial intermédia para organizar a informação estatística. Ainda hoje, a divisão distrital funciona também como recorte dos círculos eleitorais para eleição do parlamento nacional.

A pressa com que estes atributos políticos e administrativos dos distritos foram, nos últimos anos, diminuídos, ou mesmo aniquilados (caso dos governos civis), deixa um vazio de articulação entre o poder local e o poder central que não permite vislumbrar que ideia do País e do Estado têm os atuais reformadores liliputianos - tão apressados em substituir a grande reforma administrativa da época liberal.

As chamadas comunidades intermunicipais confundem duas coisas distintas: a constituição de federações de municípios para fins diversos (e que, já prevista na Constituição, realmente, deve ser da iniciativa daqueles e de “geometria variável” e voluntária) com a divisão administrativa que existe do ponto de vista do interesse do poder central e do exercício da soberania sobre o território.