quinta-feira, agosto 15, 2013

Um monstro no armário ou como neoclássicos e keynesianos já temem a (hiper)inflação como quase inevitabilidade

No Jornal de Negócios on-line (17 de Julho), Martin Feldstein tentava explicar algo que me tem intrigado («Porque é que a inflação dos Estados Unidos é tão baixa?»); acho que dá pistas boas, mas falha um pouco o alvo:

«[...] O vínculo entre a compra de obrigações pela Fed e consequente aumento das reservas monetárias alterou-se depois de 2008, porque a Fed começou a pagar juros sobre o excedente de reservas [dos bancos].  A taxa de juro oferecida por estes depósitos líquidos e totalmente seguros induziu os bancos a manter o excedente de reservas ao cuidado da Fed em vez de os converter em empréstimos e criar depósitos para absorverem o aumento das reservas, tal como teriam feito antes de 2008.

Como resultado, o volume de reservas excedentes detido pela Fed aumentou drasticamente de menos de 2 mil milhões de dólares em 2008 para 1,8 biliões actualmente. Mas a nova política da Fed de pagar juros sobre o excesso de reservas significou que apesar de haver uma maior disponibilidade das reservas em excesso, tanto o ritmo de crescimento dos depósitos como o ritmo do crescimento das reservas monetárias foram limitados.

[...] Portanto, não é surpreendente que a inflação se tenha mantido em valores tão moderados – de facto, mais baixos que em qualquer década desde o fim da II Guerra Mundial. Também não é de estranhar que a flexibilização quantitativa tenha feito tão pouco para aumentar a despesa nominal e a actividade económica real.

A ausência de uma inflação significativa nos últimos anos não significa que esta não venha a aumentar no futuro. Quando as empresas e as famílias aumentarem, eventualmente, a sua procura por empréstimos, os bancos que tenham capital suficiente podem atender a essa procura com novos empréstimos, sem exceder os limites que em outras condições poderiam resultar num nível inadequado de reservas. O crescimento resultante dos gastos por parte das empresas e das famílias pode ser bem-vindo num primeiro momento, mas a curto prazo pode tornar-se numa fonte de inflação indesejada.

Para limitar o efeito inflacionário destes empréstimos, a Fed poderia, em princípio, aumentar a taxa de juro sobre o excesso de reservas ou por meio de operações em mercado aberto para aumentar a taxa de juro dos fundos federais de curto prazo. Mas a Fed pode hesitar em agir, ou pode agir com força insuficiente devido à sua dupla obrigação de se concentrar no emprego bem como na estabilidade dos preços.

Esse resultado é mais provável se as elevadas taxas de desemprego de longa duração persistirem, assim como sub-emprego, mesmo que a taxa de inflação aumente. E é por isso que os investidores estão certos em se preocuparem com o regresso da inflação, mesmo que a compra massiva de obrigações pela Fed nos últimos anos não tenha conduzido a um aumento inflacionista.»

Tudo isto parece lógico, mas outras coisas também o são: emitir moeda para criar reservas aos bancos (mesmo que pagando juros para elas não serem passadas para o mercado com resultados híper-inflacionistas, dada a sua dimensão) é, em si mesmo, inflacionista, o que pode não se notar mais por causa da tendência deflacionista da crise atual (que é também de consumo), conjugada com um cálculo do IPC que exclui alimentação e energia, como Feldstein refere; já quanto ao cenário da possibilidade da (híper)inflação “regressar”, o aumento do juro da Fed acentuaria por si mesmo a tendência inflacionista (aumento do financiamento dos bancos) e isso é suficiente para se perceber que a pressão dominante no futuro próximo é no sentido da inflação.

Richard C. Koo, «Central Banks in Balance Sheet Recessions: A Search for Correct Response» (Nomura Research Institute, 31.03.2013) constata também que o QE não gerou inflação:

«The US monetary base grew from 100 at the time of Lehman Shock [Agosto 2008] to 347 today […], but the money supply grew only from 100 to 135 during the same period. In the UK where monetary base now stands at 433, the money supply is stuck at a pitiful 110. In the Eurozone, the monetary base is at 157 while the money supply is at 107. In Japan, the monetary base is at 150 while the money supply is at 113» (p. 7).

A propósito, diz que no Japão a base monetária cresceu de 100 em 1990 para 363 hoje, o que dá ideia da dimensão da “onda impressora” no Ocidente desde 2008 (é um crescimento próximo do dos EUA só de 2008 até agora). Por outro lado, é sintomático que Koo ache estes aumentos do volume de crédito (comparados com a emissão de moeda) insuficientes num ambiente de insolvências bancárias de facto e de correção de investimentos e consumo insustentáveis. Mas, em vez de referir os estímulos dos bancos centrais para as reservas bancárias não serem transformadas em crédito e inflação, fala de uma “balance sheet recession” do sector privado, como se fossem as empresas a não procurar crédito enquanto não resolvem os seus problemas de balanço (não me parece que seja explicação que colha no Ocidente); sugere que o hão-de procurar assim que resolvam esse problema, mas diz que entretanto se está a gerar uma “recessão em espiral” que só pode ser evitada com “estímulos fiscais” (despesa pública) para “relançar” a economia (que parece ser por ele confundida com a atividade bancária de concessão de crédito). Admite que defende a “receita” do New Deal, cujo “sucesso” de “relançamento” da economia foi com esses estímulos e não com mais oferta monetária (que considera ser a disponibilização e recurso ao crédito, que distingue de expansão da base monetária, i.e., impressão de dinheiro).

Além deste keynesianismo e de interpretações históricas duvidosas que já mereceram a concordância de Krugman (que, no entanto, não segue Koo no cepticismo sobre eficácia do QE), o autor vai dizendo, como Feldstein, que neutralizar o efeito (híper)inflacionista do QE ou da compra de dívida pública pelos bancos centrais quando e se esse dinheiro entrar no mercado de empréstimos, não vai ser fácil.

Mas o que é relevante nos artigos de Feldstein e de Koo (este último com bons gráficos no fim) é que temos um neoclássico e um keynesiano preocupados com uma (quase) inevitável explosão inflacionista causada pela política de QE dos grandes bancos centrais desde 2008.

terça-feira, agosto 06, 2013

História da Igreja Evangélica Lisbonense (II): 1909-1949

[Grão de Trigo, Jun. 2013, pp. 2-3]

Pastor José Augusto dos Santos e Silva

A era do pastor Santos e Silva

Entre 1908 e 1940 (ano do seu falecimento), a Igreja Lisbonense teve como pastor principal José Augusto dos Santos e Silva, que foi também a figura tutelar da Obra Congregacional em Portugal, de que a nossa igreja se tornou a sede nacional e o centro irradiador. De facto, a delegação no nosso país da Missão Evangelizadora do Brasil e Portugal funcionava junto da Igreja Lisbonense, suportando a manutenção do pastor e apoiando a abertura de missões. No entanto, a construção do atual edifício na rua Febo Moniz, cujo projeto nasceu em 1909 com a constituição de um fundo pelo presbítero Júlio da Silva Oliveira, foi suportada pela própria igreja e sem recurso ao endividamento externo (princípio seguido com base em Romanos 13:8, graças à previdente orientação do pastor Santos e Silva); o edifício foi terminado dentro das possibilidades dos membros e das ofertas recebidas, sendo a primeira pedra lançada em 11 de Junho de 1923, o rés-do-chão inaugurado em 7 de Junho de 1925 e a restante parte do edifício em 13 de Junho de 1926. Na ocasião da inauguração do edifício realizou-se a 1.ª Convenção Nacional das Igrejas do Regime Congregacional Segundo o Novo Testamento (9 a 13 de Junho), que lançou o vigoroso trabalho missionário da década seguinte. Eduardo Henriques Moreira (1886-1980) foi neste período pastor auxiliar (1911-1912 e 1916-1920), assim como Paulo Irwin Torres (1912-1915) e José Barbosa Ramalho (1925-1926). Os pastores Santos e Silva e Eduardo Moreira integraram a primeira direção da Aliança Evangélica Portuguesa, em 1921, respetivamente como tesoureiro e vogal. O pastor Santos e Silva (batizado em 1881 pelo pastor Santos Carvalho) presidiu ao período de maior vigor da Igreja Lisbonense, vindo a falecer em funções em 15 de Fevereiro de 1940.

Centro missionário

Entre 1916 e 1925 foi organizado na igreja um Curso Preparatório de Obreiros, que formou os irmãos responsáveis pelas missões criadas nos anos seguintes. Esse esforço continuou entre 1925 e 1934 com um Curso Teológico Evangélico de Cooperação com as igrejas Presbiteriana e Lusitana – o que mostrava a capacidade de a Igreja Lisbonense se assumir como parceira de outras denominações. A igreja, além de coordenar todo o trabalho missionário congregacional em Portugal (dentro da cooperação com a Missão Evangelizadora), organizou as suas próprias missões, de que era diretamente responsável: assim, fundou e manteve em Lisboa, entre 1903 e 1930, dezasseis missões, das quais três viriam a tornar-se igrejas autónomas ainda hoje existentes (Igreja Ajudense, Igreja Chelense e Igreja do Rego, que viria a originar a 1.ª Igreja Baptista de Lisboa). Fora de Lisboa, entre 1927 e 1952, existiram missões em Rio Maior, Alcoentre (duas missões), Moura e outras mais pequenas em número de treze.

Obra de beneficência

Em 1 de Janeiro de 1927, com o lema Fazei o bem a todos, mas principalmente aos domésticos na fé (Gálatas 6:10), nas instalações da rua Angra do Heroísmo que ficaram vagas com a mudança da igreja para a rua Febo Moniz, fundou o pastor Santos e Silva a Associação de Beneficência Evangélica. Iniciou as suas atividades em Março desse ano com consultório médico de clínica geral e de várias especialidades, duas enfermarias por sexo (8 camas), posto de enfermagem, balneário público e escola primária diurna e noturna. Em 1942, a perda das instalações levou à redução dos serviços às consultas médicas no edifício da Febo Moniz, vindo a associação a abrir-se a outras denominações em 1946 (ainda hoje existe, organizada em IPSS e mantendo um lar de idosos de São Sebastião de Guerreiros, Loures).

O pastorado de Eduardo Moreira

Após a morte do pastor Santos e Silva, a igreja reconheceu Eduardo Moreira como pastor (assembleia de 27 de Fevereiro de 1940, dirigida pelo presbítero Artur de Araújo); foram então reconhecidos também três novos presbíteros e quatro diáconos. Alguns destes irmãos investidos de ministérios viriam a considerar o estilo do pastorado de Moreira, também superintendente da Obra Congregacional, demasiado “executivo” e pouco moldado à tradição plural e colegial do congregacionalismo. O período da Segunda Guerra Mundial levou à diminuição substancial do apoio da Missão Evangelizadora, de que se ressentiu o trabalho missionário, e agudizou estas divergências. Em 1945, Moreira propôs a desvinculação em relação à Missão Evangelizadora e a assunção pela Igreja Lisbonense do encargo de manutenção do pastor. A relutância em fazê-lo, como considera Paulo Santos e Silva Calado no livro que serviu de informação a este texto (A Obra Evangélica Congregacional em Portugal, União das Igrejas Evangélicas Congregacionais Portuguesas, 2012), tornou a igreja vulnerável a pressões externas e tirou-lhe a capacidade de definir com autonomia o seu futuro – perante o fim da ajuda brasileira, em vez de assumir uma independência financeira consentânea com a sua dimensão e número de membros, procurou um outro apoio externo para a manutenção do pastorado. No seguimento desta situação, foi nomeado pastor interino o presbítero Artur de Araújo, entre 1947 e 1949, período em que se desenrolou uma discussão acalorada sobre o futuro da igreja.

História da Igreja Evangélica Lisbonense (I): 1879-1908

[Grão de Trigo, Jun. 2012, pp. 2-3]

Pastor Manuel dos Santos Carvalho

Júlio da Silva Oliveira e Manuel dos Santos Carvalho

A Igreja Evangélica Lisbonense (IEL) tem origem na obra evangelizadora de Júlio Francisco da Silva Oliveira (1844-1911), português convertido na Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro, onde foi ordenado presbítero regente. De volta a Lisboa, foi recebido na igreja presbiteriana da rua da Arriaga, mas começou a realizar cultos e reuniões de evangelização em sua casa na rua José Estêvão (n.º 135, 3.º Dto.) e, mais tarde, na rua de Angra do Heroísmo n.º 3 (bairro da Estefânia).

Foi aí que, a 19 de Junho de 1898, se constituiu a Igreja Evangélica de Lisboa.

A esta comunidade juntaram-se os membros da comunidade fundada por Manuel dos Santos Carvalho (1821-1916), operário caldeireiro convertido à Reforma entre os metodistas portugueses e que se esforçou por concretizar o sonho de fundar em Lisboa locais de culto autónomos, sem rótulo denominacional nem dependência de sociedades missionárias estrangeiras (o que era então a regra entre os evangélicos portugueses). Tratava-se da denominada Igreja Evangélica Portuguesa, como Carvalho chamou aos locais de culto que mantinha em Lisboa desde 1879.

Um congregacionalismo “prático”

Ambas as igrejas podiam ser consideradas congregacionais – isto é, baseadas num sistema de governo eclesiástico local (que não reconhece acima da igreja local nenhuma autoridade de natureza eclesiástica) e que, de alguma forma, se baseiam em Calvino nas questões mais puramente teológicas.

No entanto, nem a igreja de Silva Oliveira nem os locais de culto de Santos Carvalho tiveram qualquer origem direta no congregacionalismo histórico anglo-americano: o da igreja de Silva Oliveira formou-se a partir do presbiterianismo, evoluindo para um congregacionalismo prático aliado a uma teologia de raiz calvinista mas que, apesar de reconhecer ministérios ordenados na igreja (local), não estava enquadrado num sistema sinodal.

Quanto a Santos Carvalho, desinteressado dos rótulos denominacionais, procurou um caminho independente. Este caminho foi difícil e, por volta de 1890, enfrentava dificuldades a que acorreu a Igreja Fluminense, que em 1876 adotara a declaração de fé de Kalley, a Breve Exposição das Doutrinas Fundamentais do Cristianismo – que sustentava doutrinariamente um congregacionalismo de origem e expressão luso-brasileira. Decidida a ajudar à expansão do Evangelho em Portugal, aquela igreja do Rio de Janeiro viu nos locais de culto de Santos Carvalho um bom ponto de começo de uma ampla obra missionária. Santos Carvalho concordou e formou-se a Missão Evangelizadora do Brasil e Portugal, que enviou para Portugal Henry Maxwell Wright (1849-1931).

A influência metodista

Foi nesta altura que José Augusto dos Santos e Silva (1863-1940), que pertencia à igreja das Amoreiras de Charles Swan (Irmãos), passou a colaborar no trabalho pastoral da nova igreja, que, no entanto, solicitou colaboração aos Metodistas para se dotar de um pastor a tempo inteiro. O pastor metodista Robert Moreton passou então a estar muito ligado à organização da igreja lisbonense.

O Rev. Arthur H. Wilks pastoreou a comunidade entre 1900 e 1903, sendo substituído pelo Rev. T. Simpson (1903-1907). Segundo David Valente, no fim de 1907, a igreja tinha 54 membros comungantes, duas professoras de escola dominical, 98 alunos na escola diária e 136 na escola dominical.

A adesão ao congregacionalismo “doutrinário”

Neste fim de 1907, a igreja lisbonense deixou a colaboração com os Metodistas e recorreu a uma colaboração mais estreita com a Missão Evangelizadora do Brasil e Portugal, optando em 12 de Janeiro de 1908 pelo governo congregacional, adotando também a Breve Exposição como seu “catecismo”.

Tornou-se pastor José Augusto dos Santos e Silva depois de aprovado um documento fundador que seria em boa medida a base dos estatutos apresentados às autoridades administrativas de Lisboa no seguimento da publicação da lei dita de “separação do Estado das Igrejas” e 20 de Abril de 1911.

De facto, no seguimento da obrigatoriedade, decorrente dessa lei, de as comunidades religiosas submeterem estatutos às autoridades administrativas do distrito e de constituírem-se como associações cultuais, a IEL viu aprovados pelo Estado os estatutos da então constituída Associação Mantenedora do Culto da Igreja Evangélica Lisbonense e Suas Missões [Diário do Governo n.º 274, II série, de 25.11.1915]. Estes estatutos foram novamente reconhecidos pelo Estado em 1926 [Art.º 6.º do decreto 11:887, de 6.7.1926] e são aqueles que ainda hoje vigoram nesta igreja.

Este relato histórico, cujos dados se devem à investigação documental do nosso irmão David Valente, continuará em próximo número do Grão de Trigo.