quarta-feira, junho 12, 2013

O dízimo na Bíblia

[Grão de Trigo, Jun. 2011, pp. 3 e 8]

O dízimo é a décima parte de um rendimento, em espécies ou em dinheiro. A primeira vez que surge na Bíblia é logo no livro de Génesis (14:20) e associado à figura de Abraão. O primeiro dízimo foi, assim, pago pelo nosso pai na fé e entregue a Melquisedeque, «sacerdote do Deus altíssimo» antes da instituição do sacerdócio araónico e levítico e cujo nome em hebraico (melech = rei, zedek = justiça) tem grande significado. Nesta figura quase misteriosa de um «rei da justiça» a quem Abraão paga o dízimo, e que é referida novamente no Salmo 110 e na Epístola aos Hebreus, é difícil não ver a prefiguração de Jesus Cristo e do seu sacerdócio eterno, consumado após a sua Paixão e Ressurreição. De facto, o Salmo 110 anuncia um rei-sacerdote «segundo a ordem de Melquisedeque», a que associa David, e o autor de Hebreus claramente projecta em Jesus essa realeza sacerdotal que era um dos símbolos religiosos mais fortes do Antigo Testamento. Se a Nova Aliança está latente na Antiga e esta patente na Nova, então Abraão pagou o primeiro dízimo a Deus por meio de um rei-sacerdote, para nós prefiguração de Cristo, antes mesmo de Deus lhe prometer descendência (Gn 15:4).

Ainda em Génesis (28:22), o dízimo ressurge, agora como promessa e pela boca de Jacó, associado à aliança com Deus e como sinal de gratidão e compensação pelas graças recebidas do Altíssimo. O sentido aqui é que tudo aquilo que geramos para nos sustentarmos é uma dádiva de Deus, a Quem devemos, em sinal de gratidão, devolver a décima parte. Como se percebe no fim de Levítico, com a instituição do sacerdócio histórico judaico, a décima parte de todos os produtos agrícolas recolhidos passou a ser dada à tribo sacerdotal de Levi, como se fosse entregue a Deus (Lv 27:30-34). Isto torna-se mais claro em Números, onde o dízimo é mencionado como concessão a essa tribo pelo serviço prestado ao povo no culto a Deus (18:21, 24 e 28). Em Deuteronómio (14:22 e 26:12), a entrega do dízimo aos sacerdotes devia tornar-se uma ocasião de partilha dos crentes com os levitas e com os pobres, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros, que em conjunto comeriam uma porção; esta idealização alivia a imagem do dízimo como tributo religioso e parece prefigurar agora o sagrado convívio e a comunhão da Santa Ceia instituída por Jesus. Tanto em Neemias (10:37) como pelo profeta Malaquias (3:8), o dízimo é visto como sinal de obediência à Lei, cuja falta Malaquias considera mesmo um «roubo». Ao longo do Antigo Testamento, o dízimo de Abraão institucionaliza-se, torna-se um preceito da Lei, embora fosse possível olhá-lo como um sinal mais espiritual de acção de graças ou de partilha sagrada.

No Novo Testamento, o dízimo só aparece numa advertência de Jesus em Mateus 23:23 (= Lucas 11:42) – alertando os fariseus para o formalismo vazio da sua prática, pagando a décima parte da hortelã, do endro e do cominho e esquecendo a justiça, a misericórdia e a fé – e em Hebreus 7:2, 9 com as referências já mencionadas a Abraão e a Melquisedeque. Jesus não condena o dízimo, apenas realça o absurdo de a esse acto exterior não corresponder uma atitude interior que o deveria motivar. Mas a abolição ou inutilização do sacerdócio levítico pelo sacrifício de Jesus Cristo na cruz necessariamente tornou o dízimo institucionalizado do Antigo Testamento uma prática deslocada e anacrónica para os cristãos. Não há mais sacerdotes que sacrifiquem ao Deus altíssimo; o véu do templo antigo rasgou-se e Jesus operou em si mesmo o único sacrifício válido para sempre. Todos aqueles que o confessam como o Cristo são sacerdotes e membros do novo povo eleito. A quem, pois, haveríamos de pagar o dízimo?

Já não estamos sob a obrigação da Lei (o dízimo institucionalizado), mas também Abraão não estava – e pagou-o. Abraão entregou a Melquisedeque a décima parte do que tinha, num acto de motivação espiritual e de decisão individual. Com esse acto, ancorava na sua vida a aliança com Deus. Como Abraão, fora do jugo da Lei, também nós individualmente somos chamados a actos exteriores que ancorem a nossa fé e explicitem o nosso compromisso com Deus, dando graças sob a forma da devolução, como Jacó. Na Nova Aliança, o dízimo já não é obrigação; é uma interpelação ao cristão sobre a ancoragem da fé na sua vida, fortalecida por actos consequentes.


Post scriptum [O dízimo na nossa história protestante]:

As igrejas protestantes instalaram-se em Portugal por iniciativa particular. Isso contrastava com o que sucedera ao longo da história do nosso país, em que a Igreja Católica se confundira com o Estado e em que os reis foram quase sempre os patronos principais da sua estrutura, provendo os meios necessários à sua manutenção. Diferente é a nossa história. As igrejas protestantes, depois de um período de implantação, em que eram missões apoiadas por igrejas estrangeiras irmãs mais vigorosas, tornaram-se comunidades eclesiais que tinham de se bastar a si mesmas. Cabia, assim, aos seus membros prover os meios necessários à sua manutenção. Onde a igreja oficial contava com o braço forte do Estado, as igrejas protestantes alicerçavam-se no empenho e nos recursos particulares dos seus membros. Por isso eram igrejas livres, no melhor sentido da palavra, constituídas por cristãos que se reviam num cristianismo livre porque alheio a dependências do poder político e daqueles que não eram seus membros.

Os estatutos das igrejas protestantes mais antigas no nosso país (chamadas «históricas»), como a nossa, previam que os membros aceites na sua comunhão contribuíssem com uma quantia fixa mínima e que só excepcionalmente (e temporariamente) fossem isentos dessa obrigação. Ser membro implicava contribuir para as necessidades materiais da igreja. A Igreja Evangélica Lisbonense, fundada em 1898, consagrou nos seus estatutos de 1915 (ainda em vigor) essa obrigação [artigo 5.º, 1.º]. Era e é uma forma de responsabilização de cada membro, tornando a sua decisão de aderir mais ponderada e reflectida porque implica disponibilizar à igreja uma parte daquilo que, pelo trabalho, geramos para nos sustentarmos na vida de todos os dias. Só há responsabilidade se formos capazes de um sacrifício e só há sacrifício se estivermos empenhados. Logo, só havia e só há igrejas livres se autosustentadas no empenho dos seus membros.

A esta contribuição dos membros da igreja chamamos habitualmente «dízimo» por tradição bíblica. Sabemos que não se trata exactamente do dízimo instituído na Lei mosaica (ver texto acima), mas talvez não seja má ideia mantermos esse paralelo, mesmo que simbolicamente. Interessa manter o seu espírito, sobretudo como aparece expresso no livro de Génesis (14:20 e 28:22), embora não tenhamos necessariamente de o traduzir nuns exactos 10%. Usando a nossa liberdade cristã e o sentido de responsabilidade que lhe está associado, saberemos disponibilizar o que não penaliza excessivamente outras obrigações sem, ao mesmo tempo, descurar a dignidade daquilo que em nome do Senhor nos junta na mesma igreja aos nossos irmãos na fé.