quinta-feira, setembro 13, 2012

(VI) Positivismo e antipositivismo

A transição do século XIX para o século XX foi marcada pelo irromper do positivismo, que suscitou resistências e respostas variadas [Na imagem, Leonardo Coimbra].

Ordem e progresso por meio da ciência

A partir das décadas de 60 e 70 do século XIX, a reflexão filosófica em Portugal ficou sujeita a uma influência crescente de novas correntes de pensamento mais ou menos ligadas à tradição filosófica, surgindo na sequência disso, na intelectualidade e no meio académico, diversas manifestações que não se limitaram a uma mera actividade especulativa ou a projectos de reforma pedagógica como no passado. A transformação da sociedade passou a ser um imperativo para muitos pensadores, que consideraram a essa luz as questões filosóficas (ou problemas até então pensados pela filosofia). Em Portugal, o positivismo de Auguste Comte e de Émile Littré emergiu como um sistema de ideias animado por esta perspectiva e representado em autores como Teófilo Braga (1843-1924) e Manuel Emídio Garcia (1838-1904).

Teófilo Braga, professor do Curso Superior de Letras em Lisboa, partira de um interesse literário e etnográfico pelas tradições populares e culturais portuguesas, tendo aderido na década de 70 do século XIX à doutrina cientificista comtiana e à lei dos três estádios (teológico, metafísico e positivo), embora partilhando com Littré tanto a adesão ao republicanismo laicista e aos ideais democráticos como o cepticismo perante a «religião da humanidade» proposta pelo pensador francês. Com os livros Traços gerais de filosofia positiva (1877) e Sistema de sociologia (1884), Teófilo afirmou-se como o grande divulgador positivista em Portugal, conseguindo atrair boa parte da intelectualidade e do meio académico em nome de uma reforma geral das ciências acompanhada por uma reforma política, ambas feitas em nome de uma vanguarda cultural e histórica.

Entre os cultores das ciências físicas e naturais em Portugal, o positivismo alcançou o estatuto de paradigma absoluto por muitos anos, dando alento a uma atitude de triunfalismo cientificista por propor a generalização de um modelo experimentalista e matematizante a todos os campos do saber, contestando a validade daqueles que não se lhe adaptassem. Ao mesmo tempo, como era patente na obra de Teófilo, o positivismo estendia aos fenómenos históricos e sociais a mesma crença em leis universais que caberia ao método científico descobrir, o que se resolvia num determinismo e num organicismo. Estas concepções influiram profundamente nas ideias de uma nova geração de estudantes das áreas das ciências sociais e humanas, enquanto no direito levou a uma retirada das abordagens a partir da filosofia, então substituídas por uma sociologia também determinista e organicista: entrava em cena o positivismo jurídico, cultivado, entre outros, por Manuel Emídio Garcia na faculdade de direito de Coimbra.

Resistências ao positivismo

Apesar do seu triunfo aparente, o positivismo teve adversários de vulto que em geral o consideraram portador de um conceito reducionista de ciência. Em Portugal, alguns autores ensaiaram respostas ao positivismo anteriores às elaborações filosóficas mais válidas que, na Europa, contribuiriam para o questionar (por exemplo, Husserl). José Pereira de Sampaio Bruno (1857-1915), partindo do positivismo, veio a tornar-se um dos seus maiores críticos em obras como O Brasil mental (1898), A ideia de Deus (1902) e O encoberto (1904), recusando o pressuposto da objectividade da realidade e, a partir daí, o triunfalismo cientificista. O facto de a sua reflexão estar eivada de um género de messianismo panteísta que se opunha a um mal substancial e que, em termos históricos, deveria resolver-se no socialismo tornou-a suspeita e reduziu o alcance das suas críticas ao positivismo.

Nos meios católicos, destacou-se um grupo da faculdade de teologia (abolida em 1911) e de que faziam parte Manuel Eduardo da Mota Veiga, Joaquim Alves da Horta e José Maria Rodrigues, assim como o polemista padre José Joaquim de Sena Freitas (1840-1913); mas a fragilidade desta crítica – incapaz de contrapor um paradigma alternativo eficaz –, patente também no grupo jesuíta que animava a revista científica Brotéria desde 1902, não conseguiu abalar o positivismo.

No campo do direito, foi o neo-kantismo de universitários como Luís Cabral de Moncada (1888-1973) – que restaurou em 1937 em Coimbra a cadeira de filosofia do direito – que abriu caminho para outras correntes filosóficas, como o intuicionismo de Bergson, de que se reclamava Paulo Merêa (1889-1977), outro relevante pós-positivista.

A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra

Com Leonardo Coimbra (1883-1936) apareceu uma crítica filosoficamente sustentada do positivismo. Ligado aos meios republicanos em que aquele imperava, Coimbra foi o fundador da faculdade de letras do Porto, onde passou a leccionar filosofia. Integrou o movimento Renascença portuguesa [com a revista A Águia] logo após a proclamação da república com autores como Raul Proença, António Sérgio ou Teixeira de Pascoaes; mas o movimento cindir-se-ia após a polémica em torno do saudosismo de Pascoaes, que Coimbra aceitou, mas outros, como Proença e Sérgio, recusaram, fundando depois a revista Seara Nova em 1921, mais próxima da tradição racionalista. Para Pascoaes, cujo pensamento se apresentava como uma ontologia monista e panteísta, o conceito de saudade era entendido como expressão cósmica de uma «infinita lembrança da esperança» que desvendava as raízes da própria identidade cultural portuguesa. Leonardo Coimbra manifestou um saudosismo mais abstracto e também mais marginal no seu pensamento, considerando a saudade um sentimento de separação da criatividade humana em relação à unidade que anseia com o amor divino, inspirador das supremas acções morais.

No que aos contributos mais relevantes da sua obra filosófica diz respeito, Leonardo Coimbra desenvolveu uma reflexão centrada no problema das noções ou representações mentais da realidade percepcionada pelos sentidos, que via como o objecto de toda a verdadeira reflexão sobre o saber e a ciência.  Este enfoque gnosiológico permitiu-lhe problematizar a subjectividade do saber e a forma como este se desenvolve na relação com as coisas como apreendidas, criando noções e representações que orientam a pesquisa e que são realmente aquilo que é conhecido. O saber e a “realidade” de que ele dá conta são, pois, uma construção ou criação humana nessa relação com as coisas e não uma reprodução ou descrição de uma realidade feita, exterior e à espera de ser descoberta. Neste sentido, para Leonardo Coimbra, a ciência era parte da actividade criativa do homem, cuja diversidade (integrando também os sentimentos morais, a arte e a religião, por exemplo) deveria ser reconhecida – daí a sua filosofia ser designada de “criacionista”. Deste modo, não só se comprometia na sua reflexão a objectividade do método científico e o programa positivista de uma ciência capaz de abarcar a totalidade da realidade como era contrariada a noção de um universo determinista no qual a liberdade e a criatividade humanas tinham forçosamente de estar quase em absoluto condicionadas. Escreveu Criacionismo: esboço de um sistema filosófico; A alegria, a dor e a graça; Filosofia e ciência; Filosofia e metafísica; A razão experimental; Notas sobre a abstracção científica e o silogismo, entre outras obras.