quinta-feira, setembro 13, 2012

(VII) A filosofia contemporânea em Portugal

O século XX foi um tempo de influxo das novas correntes da filosofia em Portugal, mas também de definição de caminhos originais [Na imagem, Delfim Santos].

Proença e Sérgio: o grupo da Seara nova

Depois da ruptura com os saudosistas, que levou ao fim do movimento da Renascença portuguesa, formou-se um novo grupo em torno da revista Seara nova, que propunha uma regeneração da república dentro de uma matriz de racionalismo crítico aberto ao socialismo democrático. As figuras cimeiras deste grupo foram Raul Proença e António Sérgio.

Raul Proença (1884-1941) interessou-se pela filosofia de uma perspectiva prática e relacionada com os problemas políticos do seu tempo. Rejeitou o determinismo positivista e o realismo materialista, preferindo-lhes um ecletismo que definia como realismo idealista. Entendeu a criatividade e a liberdade como características e valores supremos do homem, que o faziam defender a democracia política e o socialismo reformista perante as soluções autoritárias ou a tecnocracia; recusando o colectivismo e a noção de “vontade geral” de Rousseau, e, sendo agnóstico, chegou a considerar-se herdeiro do personalismo cristão, embora recusasse a herança histórica do catolicismo. Como Sérgio, foi um opositor do Estado Novo, tendo deixado uma obra dispersa por jornais e revistas.

António Sérgio de Sousa (1883-1969), engenheiro de formação e ex-aluno do Colégio Militar e da Escola Naval, foi o proponente daquilo que ele próprio denominou “idealismo racionalista e crítico”, ancorado em autores como Platão, Descartes, Espinosa e Kant. O seu idealismo era, pois, de base platónica e não hegeliana, considerando que «a teoria das Ideias não oferecia dificuldades desde que interpretássemos “Ideia” como “lei científica”, “equação”, etc.». Partindo de uma desconfiança na intuição sensível e distinguindo o inteligível do imaginável ou representável, Sérgio via na matemática um instrumento de rigor para chegar a uma reflexão filosófica e a um conhecimento científico depurados de preconceitos, como considerava serem os casos da geometria analítica e da física moderna – nas quais via uma beleza e um equilíbrio que associava ao platonismo, à música e à poesia. As suas ideias de reforma pedagógica enraizaram-se na geração dos “estrangeirados” do século XVIII, enquanto os seus ideais políticos e cívicos de democracia e socialismo cooperativo eram tributários de figuras do liberalismo (A. Herculano) e da “Geração de 70” (O. Martins e A. de Quental), o que explica que o seu idealismo racionalista e o seu ideário progressista se distinguissem do republicanismo positivista.

Os leonardianos e a «filosofia portuguesa»

O fim da Renascença portuguesa levou a que se formasse, em torno do legado bergsoniano de Leonardo Coimbra (rejeitado pelos seareiros), um grupo que se veio a denominar «filosofia portuguesa». Foram seus animadores principais dois homens da mesma geração (e ex-alunos de Leonardo): José Marinho (1904-1975) e Álvaro Ribeiro (1905-1981). Nas suas obras, ambos desenvolveram tendências que se distinguiam do seu mestre, nomeadamente na defesa de um filosofar intrinsecamente português e no entendimento da filosofia e da ciência modernas. Álvaro Ribeiro pretendeu harmonizar o discurso filosófico (que entendia dever corresponder às regras lógicas da linguagem comum) com a teologia e a poesia, vendo nessa harmonia a característica distintiva de uma filosofia propriamente portuguesa que tinha de rejeitar os formalismos racionalista e matemático da modernidade que a isso obstavam. Por essa razão, aliás, aceitando a tradição aristotélica da filosofia praticada em Portugal desde a Idade Média, quis depurá-la do racionalismo escolástico, tal como deveria ser feito com a teologia, por si concebida no quadro da especulação em torno de um messianismo saudosista que encontrou expressão literária desde o século XVII. No caso de José Marinho, a sua reflexão foi construída a partir daquilo que entendia ser uma razão integral, simultaneamente conceptual ou conceptiva (inclusiva) e judiciosa (exclusiva), considerando que o racionalismo nas suas fases escolástica e positivista haviam hipertrofiado a segunda tendência. Nesse sentido, o mito, a poesia e o simbolismo poderiam ter uma função iniciática ou anagógica, em que situava o saudosismo. António Quadros (1923-1993) foi outro autor deste grupo (reunido na revista 57), que introduziu a influência do existencialismo e nela desenvolveu a estética e a filosofia da história.

Outros dois filósofos, com percursos autónomos relativamente à «filosofia portuguesa», podem ser considerados discípulos de Leonardo Coimbra: Agostinho da Silva (1906-1996) e Delfim Pinto dos Santos (1907-1966). O primeiro desvalorizou a componente nacional da filosofia, admitindo a raiz universal da mesma e pretendendo exprimir numa linguagem universalista um sentido para a cultura de língua portuguesa, que pensou como um todo e a que pretendeu religar o mito do Quinto Império a partir da especulação joaquimista e de uma sensibilidade franciscanista. Já Delfim Santos, dado ter-se formado também fora do País, juntou à influência de Leonardo a de filósofos como Nicolai Hartmann e M. Heidegger, dialogando com as mais relevantes correntes da contemporaneidade: em Situação valorativa do positivismo (1938) critica o neopositivismo lógico a partir de ideias que desenvolve da perspectiva gnosiológica em Conhecimento e realidade e, em Da filosofia (1940), revelando os traços gerais do seu pensamento. Santos posiciona-se de uma perspectiva existencial (que influencia as suas concepções pedagógicas que valorizam a criatividade pessoal), recusando o espírito de sistema a favor de uma atitude interpelativa e de um pensamento categorial em que o conceito de verdade se torna central – embora num contexto de consciência aguda da dificuldade, senão impossibilidade, de fazer coincidir realidade e conhecimento. Delfim Santos foi ainda o único grande nome da filosofia em Portugal com origem intelectual e espiritual no minoritário ambiente protestante do nosso país.

Outras correntes até à actualidade

A tradição positivista foi continuada em Portugal através do neopositivismo lógico da Escola de Viena e do Grupo de Cambridge, recebida e divulgada entre nós por Abel Salazar (1889-1946), que expõe a sua reflexão anti-metafísica no quadro do empirismo lógico, Vieira de Almeida (1888-1962) – que se dedicou à lógica moderna, à gnosiologia, à epistemologia, à psicologia e à filosofia da arte –, Edmundo Curvelo (1913-1955), discípulo de Almeida quase inteiramente dedicado a problemas lógicos, e Mário Sottomayor Cardia (1941-2006), que no mesmo quadro filosófico desenvolveu uma investigação ética crítica do utilitarismo. O pensamento dialéctico de raiz hegeliana continuou a ter influência na filosofia política e do direito nas obras de Afonso Queiró (n. 1914), Augusto Saraiva (1900-1975), Alberto Ferreira (n. 1920) e António José de Brito (n. 1927). A filosofia de Husserl e a fenomenologia, já reflectidos em Leonardo Coimbra e Miranda Barbosa, tiveram vários divulgadores em Portugal, entre os quais Alexandre Fradique Morujão (n. 1922), Gustavo de Fraga (n. 1922) e Eduardo Abranches de Soveral (n. 1927), sendo autores como José Enes (n. 1924) e Fernando Gil (n. 1937) igualmente marcados por esta corrente. A neo-escolástica foi cultivada na faculdade de filosofia de Braga, criada em 1947 e em que se destacou Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Finalmente, em pensadores como Vergílio Ferreira (1916-1997) e Eduardo Lourenço (n. 1923), o existencialismo teve uma influência evidente.

(VI) Positivismo e antipositivismo

A transição do século XIX para o século XX foi marcada pelo irromper do positivismo, que suscitou resistências e respostas variadas [Na imagem, Leonardo Coimbra].

Ordem e progresso por meio da ciência

A partir das décadas de 60 e 70 do século XIX, a reflexão filosófica em Portugal ficou sujeita a uma influência crescente de novas correntes de pensamento mais ou menos ligadas à tradição filosófica, surgindo na sequência disso, na intelectualidade e no meio académico, diversas manifestações que não se limitaram a uma mera actividade especulativa ou a projectos de reforma pedagógica como no passado. A transformação da sociedade passou a ser um imperativo para muitos pensadores, que consideraram a essa luz as questões filosóficas (ou problemas até então pensados pela filosofia). Em Portugal, o positivismo de Auguste Comte e de Émile Littré emergiu como um sistema de ideias animado por esta perspectiva e representado em autores como Teófilo Braga (1843-1924) e Manuel Emídio Garcia (1838-1904).

Teófilo Braga, professor do Curso Superior de Letras em Lisboa, partira de um interesse literário e etnográfico pelas tradições populares e culturais portuguesas, tendo aderido na década de 70 do século XIX à doutrina cientificista comtiana e à lei dos três estádios (teológico, metafísico e positivo), embora partilhando com Littré tanto a adesão ao republicanismo laicista e aos ideais democráticos como o cepticismo perante a «religião da humanidade» proposta pelo pensador francês. Com os livros Traços gerais de filosofia positiva (1877) e Sistema de sociologia (1884), Teófilo afirmou-se como o grande divulgador positivista em Portugal, conseguindo atrair boa parte da intelectualidade e do meio académico em nome de uma reforma geral das ciências acompanhada por uma reforma política, ambas feitas em nome de uma vanguarda cultural e histórica.

Entre os cultores das ciências físicas e naturais em Portugal, o positivismo alcançou o estatuto de paradigma absoluto por muitos anos, dando alento a uma atitude de triunfalismo cientificista por propor a generalização de um modelo experimentalista e matematizante a todos os campos do saber, contestando a validade daqueles que não se lhe adaptassem. Ao mesmo tempo, como era patente na obra de Teófilo, o positivismo estendia aos fenómenos históricos e sociais a mesma crença em leis universais que caberia ao método científico descobrir, o que se resolvia num determinismo e num organicismo. Estas concepções influiram profundamente nas ideias de uma nova geração de estudantes das áreas das ciências sociais e humanas, enquanto no direito levou a uma retirada das abordagens a partir da filosofia, então substituídas por uma sociologia também determinista e organicista: entrava em cena o positivismo jurídico, cultivado, entre outros, por Manuel Emídio Garcia na faculdade de direito de Coimbra.

Resistências ao positivismo

Apesar do seu triunfo aparente, o positivismo teve adversários de vulto que em geral o consideraram portador de um conceito reducionista de ciência. Em Portugal, alguns autores ensaiaram respostas ao positivismo anteriores às elaborações filosóficas mais válidas que, na Europa, contribuiriam para o questionar (por exemplo, Husserl). José Pereira de Sampaio Bruno (1857-1915), partindo do positivismo, veio a tornar-se um dos seus maiores críticos em obras como O Brasil mental (1898), A ideia de Deus (1902) e O encoberto (1904), recusando o pressuposto da objectividade da realidade e, a partir daí, o triunfalismo cientificista. O facto de a sua reflexão estar eivada de um género de messianismo panteísta que se opunha a um mal substancial e que, em termos históricos, deveria resolver-se no socialismo tornou-a suspeita e reduziu o alcance das suas críticas ao positivismo.

Nos meios católicos, destacou-se um grupo da faculdade de teologia (abolida em 1911) e de que faziam parte Manuel Eduardo da Mota Veiga, Joaquim Alves da Horta e José Maria Rodrigues, assim como o polemista padre José Joaquim de Sena Freitas (1840-1913); mas a fragilidade desta crítica – incapaz de contrapor um paradigma alternativo eficaz –, patente também no grupo jesuíta que animava a revista científica Brotéria desde 1902, não conseguiu abalar o positivismo.

No campo do direito, foi o neo-kantismo de universitários como Luís Cabral de Moncada (1888-1973) – que restaurou em 1937 em Coimbra a cadeira de filosofia do direito – que abriu caminho para outras correntes filosóficas, como o intuicionismo de Bergson, de que se reclamava Paulo Merêa (1889-1977), outro relevante pós-positivista.

A inquietação filosófica de Leonardo Coimbra

Com Leonardo Coimbra (1883-1936) apareceu uma crítica filosoficamente sustentada do positivismo. Ligado aos meios republicanos em que aquele imperava, Coimbra foi o fundador da faculdade de letras do Porto, onde passou a leccionar filosofia. Integrou o movimento Renascença portuguesa [com a revista A Águia] logo após a proclamação da república com autores como Raul Proença, António Sérgio ou Teixeira de Pascoaes; mas o movimento cindir-se-ia após a polémica em torno do saudosismo de Pascoaes, que Coimbra aceitou, mas outros, como Proença e Sérgio, recusaram, fundando depois a revista Seara Nova em 1921, mais próxima da tradição racionalista. Para Pascoaes, cujo pensamento se apresentava como uma ontologia monista e panteísta, o conceito de saudade era entendido como expressão cósmica de uma «infinita lembrança da esperança» que desvendava as raízes da própria identidade cultural portuguesa. Leonardo Coimbra manifestou um saudosismo mais abstracto e também mais marginal no seu pensamento, considerando a saudade um sentimento de separação da criatividade humana em relação à unidade que anseia com o amor divino, inspirador das supremas acções morais.

No que aos contributos mais relevantes da sua obra filosófica diz respeito, Leonardo Coimbra desenvolveu uma reflexão centrada no problema das noções ou representações mentais da realidade percepcionada pelos sentidos, que via como o objecto de toda a verdadeira reflexão sobre o saber e a ciência.  Este enfoque gnosiológico permitiu-lhe problematizar a subjectividade do saber e a forma como este se desenvolve na relação com as coisas como apreendidas, criando noções e representações que orientam a pesquisa e que são realmente aquilo que é conhecido. O saber e a “realidade” de que ele dá conta são, pois, uma construção ou criação humana nessa relação com as coisas e não uma reprodução ou descrição de uma realidade feita, exterior e à espera de ser descoberta. Neste sentido, para Leonardo Coimbra, a ciência era parte da actividade criativa do homem, cuja diversidade (integrando também os sentimentos morais, a arte e a religião, por exemplo) deveria ser reconhecida – daí a sua filosofia ser designada de “criacionista”. Deste modo, não só se comprometia na sua reflexão a objectividade do método científico e o programa positivista de uma ciência capaz de abarcar a totalidade da realidade como era contrariada a noção de um universo determinista no qual a liberdade e a criatividade humanas tinham forçosamente de estar quase em absoluto condicionadas. Escreveu Criacionismo: esboço de um sistema filosófico; A alegria, a dor e a graça; Filosofia e ciência; Filosofia e metafísica; A razão experimental; Notas sobre a abstracção científica e o silogismo, entre outras obras.

(V) A filosofia plural de Oitocentos

O século XIX foi um período de secularização da filosofia portuguesa, expressa numa progressiva descontinuidade com o passado.

O aristotelismo sensista de Pinheiro Ferreira

Na primeira metade do século XIX, Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) foi o principal cultor da filosofia em Portugal. A influência dos Oratorianos, com a sua abertura às correntes modernas e experimentalistas e, em particular, o legado do padre João Baptista, que tentara renovar a filosofia aristotélica libertando-a da escolástica, foram marcantes na formação de Pinheiro Ferreira. O filósofo ocupou-se da «teórica do raciocínio» e da «teórica da linguagem», que julgava coincidentes, considerando as categorias e a teoria do silogismo de Aristóteles as ferramentas ainda e sempre válidas para esse seu enfoque analítico do trabalho filosófico. No seu projecto, a filosofia serviria para dar unidade e dotar de uma linguagem rigorosa todas as áreas do conhecimento. Paralelamente, Pinheiro Ferreira entendeu como válida a filosofia sensista de Locke e de outros autores até onde actualizavam e desenvolviam a perspectiva aristotélica sobre a formação de ideias a partir dos sentidos. Por esta razão, rejeitou a obra de Kant e a tendência idealista das «seitas filosóficas alemãs», reagindo igualmente a uma abordagem positivista das ciências que secundarizasse a análise conceptual e a discussão dos seus pressupostos gnosiológicos.

Esta concepção geral da filosofia foi apresentada por Pinheiro Ferreira nas suas Prelecções filosóficas sobre a teórica do discurso e da linguagem, a estética, a diciósina e a cosmologia (1813), publicadas aquando da sua permanência no Rio de Janeiro com a corte aí refugiada das invasões francesas. As suas ideias sensistas foram desenvolvidas em Ensaio sobre a Psicologia (1826), publicado em Paris, numa fase da sua vida em que viveu e leccionou em França e na Alemanha, antes de definitivamente regressar a Portugal. Dessa época são igualmente o seu Manual do cidadão em um governo representativo ou princípios de direito constitucional (1834), no qual Pinheiro Ferreira afirma os seus princípios liberais, favoráveis aos direitos individuais e a uma monarquia parlamentar aberta ao reformismo democrático, e as Noções elementares de filosofia geral aplicada às ciências morais e políticas (1839).

Tendo em todas as suas obras mantido o propósito de coadunar a sua concepção da filosofia com o catolicismo, Silvestre Pinheiro Ferreira publicou em 1845 a obra Teodiceia ou tratado elementar da religião natural e da religião revelada, na qual se socorre de elementos das ciências naturais para defender a necessidade de uma «causa primeira» transcendente. Na mesma obra, o filósofo recusa substancialidade ao mal, que considera uma mera percepção de fenómenos que concorrem sempre para o bem, e realça a necessidade da revelação para orientar e aprofundar a compreensão da relação entre a divindade e o crente, que a religião natural ajuda apenas a esclarecer em termos de universalidade.

A descristianização da filosofia

Na segunda metade do século XIX, a proposta filosófica de Pinheiro Ferreira, assente ainda num aristotelismo renovado e no jusracionalismo, foi ultrapassada por abordagens mais consentâneas com as escolas de pensamento dominantes na Europa e com as inquietações de uma geração que revelou maior dificuldade de harmonizar a sua reflexão com a ortodoxia católica. Pedro de Amorim Viana (1822-1901), matemático e docente oriundo não dos estabelecimentos tradicionalmente ligados à filosofia mas do ensino superior politécnico, publicou em 1866 a obra que operou esta mudança de fundo: Defesa do racionalismo ou análise da fé. Embora mantivesse a desconfiança da geração anterior perante a concepção positivista da ciência, rejeitou o sensismo lockeano e cortou resolutamente com a tradição aristotélica, a que preferiu o racionalismo de Leibniz e Kant – que lhe permitiam ver na filosofia uma actividade capaz de fornecer à ciência uma reflexão ontológica necessária à organização e integração dos saberes. Amorim Viana pretendeu erguer uma proposta eclética que conciliasse fé e razão mas que não implicasse a aceitação das crenças na Trindade, na divindade de Jesus, em milagres e em profecias (que entendia contrárias à razão), inclinando-se, por isso, para um espiritualismo desconfessionalizado e radicado em Platão e Espinoza.

O espiritualismo descristianizado inspirado na filosofia de Karl Christian Friedrich Krause (1781-1832) teve em J. M. Cunha Seixas (1836-1895) um outro cultor de vulto em Portugal. Considerando-se um dissidente do krausismo (divulgado entre nós por J. M. Rodrigues de Brito), Cunha Seixas forjou um sistema que apelidou de «pantiteísta» e que unificava na ontologia o espiritual e o racional. Para se tornar conhecimento, a reflexão ontológica teria de obedecer a um processo de crescente abstracção e integração, operando primeiro com ideias relativas a objectos particulares (substância), depois com ideias gerais já abstractas (manifestação) que se deveriam encaminhar para ideias universais e absolutas em que deveria tornar-se patente a unidade divina de todas as coisas e a participação de cada uma delas no todo (harmonia). Na sua obra Princípios gerais de filosofia (publicada postumamente em 1898) convergiu o seu pensamento, desenvolvido em várias publicações anteriores aparecidas desde os anos 70 do século XIX.

Do espiritualismo ao idealismo hegeliano

Depois da crise das sínteses escolásticas entre razão e revelação, os Oratorianos e Silvestre Pinheiro Ferreira tentaram salvar o aristotelismo harmonizando-o, através do sensismo lockeano, com as aquisições mais relevantes da ciência moderna; esta, por seu lado, era considerada coadunável com o teísmo se interpretada à luz da teologia natural, a qual, no entanto, sendo insuficiente para a realização moral do homem, era completada pela teologia revelada. Sob influência da descristianização da cultura intelectual europeia e da influência de propostas filosóficas como o krausismo, Amorim Viana e Cunha Seixas recusaram o delicado equilíbrio legado pela geração anterior e romperam com o que restava das amarras ao cristianismo numa altura em que o influxo do evolucionismo darwinista contribuía para quebrar a tradição reflexiva em torno da teologia natural, reduzindo o campo do teísmo. Como, porém, também recusavam o materialismo e uma concepção puramente imanente da realidade, optaram pelas suas vias espiritualistas. Mas, ainda em vida destes dois filósofos manifestaram-se outras tendências que se afastaram do espiritualismo.

Em intelectuais como J. P. Oliveira Martins (1845-1894), que, embora não sendo exactamente filósofos, se interessavam por filosofia, despertou o interesse pelo idealismo de G. W. F. Hegel. Nas suas obras, Martins terá sempre pressuposto que a história é a manifestação da realidade ideal, interessando-se por esboçar uma filosofia da história (universal e nacional) de acordo com esta concepção. Antero de Quental (1842-1891), como Martins, embora pendesse para um cientificismo naturalista, entendia que a reflexão filosófica e a compreensão da realidade humana não podia prescindir do idealismo de Hegel, vendo no socialismo (inspirado em Proudhon) um horizonte moral necessário aos problemas do seu tempo.