domingo, agosto 26, 2012

(I) A filosofia medieval portuguesa

As primeiras obras filosóficas no ocidente peninsular foram contemporâneas da cristianização da filosofia, ocorrida na transição da Antiguidade para a Idade Média. Os autores que em Portugal cultivaram a reflexão filosófica desde a Idade Média integraram ou inspiraram-se nas correntes dominantes da filosofia europeia do seu tempo. Este facto não impediu que alguns deles revelassem originalidade no seu pensamento e muito menos que desenvolvessem de forma brilhante alguns dos temas e problemas tratados pelas correntes europeias de que eram tributários.

Paulo Orósio e São Martinho de Dume

O primeiro pensador relevante aparecido no que viria a ser o espaço português, e inscrito na tradição filosófica, foi Paulo Orósio. Nascido perto de Braga no fim do século IV, foi o autor, entre outras obras, de História contra os pagãos (417). Discípulo directo de Santo Agostinho, foi influenciado pelas suas concepções filosóficas e teológicas, sendo também marcado pelo ambiente religioso agitado do noroeste da península, combatendo heresias como o priscilianismo, o origenismo e o pelagianismo. Orósio defendeu ainda uma concepção universalista da história humana e opôs uma leitura linear e progressiva do tempo à leitura cíclica herdada de Políbio.

São Martinho de Dume (c. 518-579), bispo de Braga, foi autor, entre outras obras, de um tratado de ética, Formulae vitae honestae. Dedicada ao rei dos Suevos, esta obra evidencia a influência de Séneca e apoiou-se apenas na razão natural, dispensando o recurso à moral revelada ou à Bíblia. É um dos primeiros exemplos de um género literário medieval depois chamado «espelho dos príncipes» e entre nós cultivado, por exemplo, por Álvaro Pais, bispo de Silves, na sua obra Speculum regum (c. 1344).

Santo António de Lisboa e o rei D. Duarte

Nos escritos de Santo António de Lisboa (f. 1231), anteriores à síntese tomista entre razão e revelação, encontra-se já uma filosofia que, embora plenamente cristianizada, propõe a colaboração da filosofia e da razão na obra divina da salvação. Nos seus Sermões, Santo António desenvolveu uma espiritualidade franciscanista que teria uma longa influência em Portugal e, plenamente integrado no espírito das ordens mendicantes, explorou a vertente prática e quotidiana da moral. [Santo António entrou em contacto com os franciscanos enquanto estudou no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que era então a sede espiritual do reino português. Já em Itália, foi convidado por São Franscisco de Assis a pregar e a ensinar teologia aos frades da sua ordem, o que o tornou muito popular. Foi canonizado em 1232 e declarado doutor da Igreja em 1946.] Outro franciscano português que se destacou na teologia foi Frei André do Prado, autor de Horologium fidei e Spiraculum franscisci mayronis.

Dado que os autores referidos escreviam em latim, é ao rei D. Duarte (1391-1438) que se deve a primeira obra filosófica em língua portuguesa – o Leal conselheiro. Esta obra foi a primeira a articular reflexões filosóficas em língua vulgar, algo que só se tornaria comum alguns séculos mais tarde. Trata-se de um livro pouco sistemático, orientado para questões de filosofia moral e política, mas profundamente marcado pela síntese operada por Tomás de Aquino entre a filosofia aristotélica e os ensinamentos da Igreja Católica. Outros autores, em latim ou em língua vulgar, exploraram a confluência entre a filosofia moral e a filosofia política, dentro da matriz cristã da Idade Média – são os casos de Diogo Lopes Rebelo e Frei João Sobrinho no fim do século XV.

A filosofia de Pedro Hispano

Pedro Julião, também conhecido como Pedro Hispano Portucalense, nascido em Lisboa por volta de 1205, foi o maior filósofo português da Idade Média e aquele cuja obra alcançou autêntica notoriedade à escala europeia. Iniciou os seus estudos na escola catedral de Lisboa e continuou-os em Paris e Siena, onde se tornou professor e autor respeitado. Apesar de ser médico, teve uma importante carreira eclesiástica, sendo sucessivamente decano da Sé de Lisboa, arcebispo de Braga, cardeal e o único papa português, com o nome de João XXI (1276).

Aluno de Alberto Magno e contemporâneo de Tomás de Aquino, Pedro Hispano foi um dos lógicos mais influentes da primeira escolástica. A sua fama em toda a Europa está patente no facto de Dante o ter incluído no grupo de grandes estudiosos retratados na Divina comédia, onde é referido como «Pietro Spano». A sua obra Tractatus, depois conhecida como Summulae logicales, foi copiada e ensinada nas universidades europeias durante mais de três séculos.

Na sua obra, Pedro Hispano preocupou-se com as propriedades dos termos utilizados na linguagem e com a sua relação com o conhecimento. O estudo do significado e da articulação dos diferentes termos (palavras e expressões) nas proposições tornou-se, assim, o objecto da lógica e aproximava-a da gramática, com a qual deveria, da perspectiva do lógico português, tender a partilhar as mesmas regras. O ideal do nosso lógico seria que as leis do pensamento se aproximassem das leis da linguagem.

Na análise dos termos utilizados nas proposições do discurso filosófico, Pedro Hispano distinguiu entre o significado e a suposição. O significado dizia respeito ao modo como as palavras nomeiam ou representam as coisas ou elementos da realidade; já a suposição trata da relação lógica entre as palavras no discurso e na reflexão. Para este filósofo era no campo da suppositio que estava o âmbito da lógica e da filosofia, cujo estudo incidia, assim, não sobre a própria realidade, mas sobre o discurso sobre a realidade. Para os lógicos medievais como Pedro Hispano, esta distinção implicava que a filosofia deveria fornecer às ciências uma linguagem conceptualmente rigorosa, distinta tanto da linguagem vulgar quanto da linguagem literária.

Outras obras atribuídas a Pedro Hispano, nomeadamente Scientia libri de anima, abordam a questão da alma, sua natureza e capacidade de auto-conhecimento.

O estudo da filosofia em Portugal

Como nos outros países europeus, em Portugal a universidade teve origem nas escolas das catedrais e dos mosteiros. Logo que os primeiros reis portugueses estabeleceram a capital política do reino em Coimbra foi aí fundado um seminário, no qual, ainda no século XII, terá começado o ensino da lógica. Também antes da fundação da universidade, já eram ensinadas no mosteiro de Alcobaça (pelo menos desde 1269) a gramática, a lógica e a teologia. Frei João Claro, doutor em teologia pela universidade de Paris e abade deste importante mosteiro, foi uma das figuras que evidenciam a continuação do interesse pela filosofia em Alcobaça no século seguinte; além dos códices que deixou, há ainda outros, anónimos: o Horto do esposo e o Bosque deleitoso solitário, que também têm alguns conteúdos filosóficos.

A instituição do Estudo Geral em 1288 (com aprovação papal em 1290) conduziu ao ensino sistemático da teologia e do direito canónico em Lisboa e depois em Coimbra, bem como das disciplinas da lógica, da gramática e da dialéctica, que auxiliavam aquelas áreas de estudos. Nesta época, já as obras de Aristóteles dominavam em universidades europeias como a de Paris, vindo a influenciar desde o início o ensino da filosofia em Portugal. Apesar de ter desde muito cedo um ensino regulamentado e orientado para a formação de uma elite clerical e jurídica, a universidade será nos séculos seguintes o espaço privilegiado da reflexão e produção filosóficas em Portugal.