quarta-feira, dezembro 16, 2009

O concelho mais neocartista de Portugal

De entre os concelhos portugueses, o da Horta (ilha do Faial, Açores) destaca-se, com as Caldas da Rainha, por manter uma coroa autêntica no seu brasão de armas e por fugir à "normalização" heráldica que tornou muito semelhantes estes símbolos municipais. Mas a cidade e concelho da Horta tem uma particularidade, singular em todo o Portugal: os motivos cartistas do seu brasão de armas, patentes na imagem em cima e na explicação no documento de 3 de Maio de 1865, de el-rei D. Luís I (em baixo):

«...hei por bem fazer mercê à cidade da Horta do título de Muito Leal, e outro sim me praz permitir, vista a informação do rei de armas de Portugal, que a mesma cidade de ora em diante possa usar da mesma forma do seguinte brasão de armas, a saber: um escudo esquartelado, tendo no primeiro quartel em campo de prata as quinas de Portugal; no segundo de campo azul o busto de prata de Sua Majestade Imperial o Senhor Dom Pedro IV, meu augusto avô de muita saudosa memória, e no contra-chefe a coroa e o cetro de ouro alusivos ao facto da sua abdicação; e no terceiro em campo azul um livro de prata tendo escrito em letras azues a data de 29 de Abril de 1826 em alusão à Carta Constitucional da monarquia; e no quarto em campo de púrpura um castelo de prata e pousado sôbre êle um açor também de prata; orla azul com a legenda em letras de ouro - D. Luiz I à mui leal cidade da Horta: coroa ducal e por timbre um braço de prata armado duma espada do mesmo metal...» Fonte

sábado, novembro 28, 2009

A aventura moral do individualista

A enorme maioria das pessoas é instintivamente colectivista. Não há nada de imediato a fazer quanto a isso. Continua a ser completamente estranha àquela enorme maioria a descoberta que se fez de que os seres humanos se relacionam espontaneamente e ajustam sem coerção as suas necessidades às dos outros, criando laços voluntários de interdependência e de troca. Chamou-se por analogia “mercado” às possibilidades deste tipo de relação em que cada um age por si próprio e em seu nome ou em nome daqueles a quem se associa. Essas relações, embora nasçam da necessidade, são voluntárias no sentido de poderem ser preteridas a favor de outras julgadas mais convenientes. Mas, para isso, cada um tem de ser livre de poder gerir as suas relações e os resultados delas obtidos. A essa autonomia do indivíduo se chama propriamente individualismo – e esse individualismo pode ser usado com propósitos egoístas ou altruístas porque o critério é de cada pessoa.

Mas a generalidade das pessoas não entende nem quer entender o individualismo e o mercado. A moralidade que lhes pregaram desde o berço, e que é superior a qualquer conjectura moral ou económica, é que todos somos responsáveis uns pelos outros e ninguém por si próprio; cada um deve dar o seu “contributo à sociedade” e desta receber “aquilo a que tem direito”. Dado que aprenderam que nada há de moral no mercado, orgulham-se da sua ignorância sobre questões económicas porque, como lhes ensinaram, a única economia tolerável reduz-se a uma actividade de redistribuição da riqueza. E disto não saem.

Alguns, por momentos, podem escutar com curiosidade ideias diferentes, mas logo que regressam às rotinas ligam o piloto automático colectivista. As ideias que lhes inculcaram são muito fortes e têm associados mecanismos de medo muito eficazes: a grande maioria das pessoas é vítima de alguém ou de alguma coisa e precisam de ajuda ou que tomem conta delas; eles próprios nunca têm a certeza de não pertencer ao número das vítimas e, portanto, só se sentem seguros se a “sociedade” estiver comprometida em ajudá-los. Desse modo, o altruísmo, o sistema simbólico da entreajuda, torna-se o grande vínculo que mantém a unidade da “sociedade” e de cada um com ela. As ideias diferentes não passam de fantasias; para um número considerável, estas fantasias são mesmo perigosas ou constitutivas da moral hipócrita daqueles que, quebrando a entreajuda, são responsáveis pela existência de tantas vítimas. Estes, os que alegadamente não se pautam pelo colectivismo, são os elementos corruptores do sistema, os agentes da entrada do mal no mundo e contra os quais se torna evidente a necessidade de reforço da protecção colectiva.

Porque a função providente da “sociedade” corre mal, os responsáveis pelo mal estão obviamente com demasiado poder, influenciando as decisões políticas e o curso dos acontecimentos. É instintivo associá-los aos que têm riqueza ou modos de vida independente – por mais que esses sejam muitas vezes utilizadores inteligentes das decisões colectivas estabelecidas. Só que como o resultado dessas decisões não deveria ser a desigualdade de resultados, logo se conclui que a vantagem desses quantos teve de ser conquistada à custa daquilo que pertence a todos. Não é uma consequência do sistema colectivista, mas da sua corrupção. Daí o apelo que podem ter os tribunos da plebe autopromovidos ou os Césares moralizadores. E quando o exercício do poder colectivo por estes se revela desastroso é porque, mais uma vez, houve cedência à moral hipócrita dos que fazem vítimas, violando os puros princípios do colectivismo. Pode-se assim sempre começar de novo sem questionar os instintos. Pode-se assim viver numa sociedade completamente organizada numa lógica colectivista e proclamar-se que impera o individualismo mais selvagem e maléfico.

Esta visão do mundo é perfeitamente compatível com o mais bruto egoísmo individual. Na sua vida privada, o colectivista instintivo pode ser completamente autocentrado nos seus actos sem se contradizer. É que ele é uma vítima e tem direitos que a “sociedade” lhe deve; ora, dado que a “sociedade” é ineficaz na distribuição desses direitos, por causa da corrupção causada pelos que fazem vítimas, é perfeitamente legítimo que ele aja como um recolector – senão um predador – em relação àquilo “que é de todos”. Isso que é de todos também é dele e, se as benesses ficam à mão de semear, só se fosse tolo é que não as colhia. Mais vale ser ele, que é uma pobre vítima, do que um desses corruptores do sistema que já tem mais do que a medida. O facto de ser vítima pode até dar-lhe o direito de agir com agressividade e de transgredir os princípios altruístas do colectivismo: ele está a defender aquilo a que tem direito – seja o subsídio de desemprego estando empregado ou a entrada mais à frente na bicha para a ponte; se há injustiças no sistema, não são as “migalhas” que ele colhe que a originam, é a corrupção dos que fazem vítimas. De maneira que o colectivista pode comportar-se como um pulha com os seus semelhantes e preservar a sua boa consciência, odiando ritualmente os seus demónios anti-colectivistas.

É esta lógica circular, preventiva das contradições, alimentada pelo medo e pelo ódio ao que se julga causar o medo, que é praticamente impossível ao individualista de quebrar. O individualista descobriu por um percurso íntimo que o colectivismo está errado. Não descobriu apenas que é ineficaz, descobriu que é imoral. Por isso, tem dificuldade de entender a razão pela qual ninguém está disposto a levar a sério o que tem para dizer. Mais: fica chocado por o tomarem a ele por um ser imoral. Exalta-se algumas vezes, irrita-se com os seus interlocutores e, de repente, apercebe-se que está a representar o papel de arrogante em que eles o querem ver. Claro que essa arrogância até está proporcionada àquela que exibem os que dele discordam, mas é a sua que sobressai porque todos estão de acordo em discordar dele. Então, o individualista cala-se, deixa cair os braços. Está magoado, mas aprende que essa mágoa lhe vem de um instinto gregário que lhe pede concordância com o grupo. Aprende a superar isso separando as pessoas dos seus instintos mais errados, tentando compreender porque pensam e agem daquele modo. Evitando a misantropia, o individualista convive com os seus semelhantes e passou a considerar-se um estrangeiro. Não pertence moralmente a esta sociedade, mas tem de viver nela com aqueles que se pautam por valores, expectativas e objectivos diferentes.

Aqui começa a aventura moral do individualista. Como viver no colectivismo sem se tornar um colectivista? Há uma primeira porta de saída com que se depara: ser um individualista consequente é tão difícil que viver as contrariedades enfrentadas seria oferecer-se a um estranho sacrifício pessoal no altar do colectivismo. Ele, um individualista, precisamente porque o é e não sente qualquer comprometimento moral com o colectivismo, não deve aproveitar tudo aquilo que o sistema lhe der, tudo aquilo que lhe vier ter à mão? Ele não é responsável por as coisas serem como são, ele diz-se, como toda a gente sabe, individualista. Está moralmente de fora, mas é obrigado a viver neste meio. Não esperam, com certeza, que ele se deixe espezinhar pelo sistema, ser forçado aos deveres e recusar os direitos. Ele alerta para a falência moral do sistema que não lhe permite viver como se deve viver; e então vai viver do sistema, mas denunciando-o. É isso que o distingue do sectário colectivista que, denunciando um défice de colectivismo que torna tudo imoral, se põe à margem, às vezes com uma opção pela violência. Ele não. O individualista não se transforma num objecto sacrificial. Era o que faltava: o colectivismo não vale tanto. O individualista decide sair pela primeira porta e torna-se um pragmático. Se está à procura de emprego, deve considerar todas as ofertas. Um emprego mantido pela máquina fiscal do colectivismo pode ser aceitável. Alguém vai ficar com ele, de qualquer maneira. Que irónico que é ficar ele nesse lugar em vez de um colectivista convicto. Algumas pessoas como ele em lugares desses e um dia será fácil desmontar todo o sistema…

A segunda porta de saída – que pode ser a primeira, dependendo de onde se vem – é a que se depara ao individualista que não julga os outros. “Não julgues para não seres julgado”: a diferença entre a frase assim dita e a que no evangelho está na boca de Jesus é que este falava de direitos e deveres das pessoas com Deus, não das pessoas com a “sociedade” funcional e simbolicamente transformada n’Ele. Para este segundo tipo de individualista pragmático, cada um sabe de si e não lhe compete a ele andar a apontar o dedo. Não é um mau princípio, mas ele sabe que, na verdade, essa atitude se traduz em não mostrar qualquer desagrado ou desconforto perante o pragmatismo de outros individualistas, o que não é exactamente a mesma coisa de se abster de apontar o dedo; é, pelo contrário, implicitamente, aprovar aquela conduta. Porque o segundo individualista pragmático sabe que há formas de tornar conhecida a sua maneira de ver, de mostrar desagrado e desconforto, sem andar a “julgar” os outros ou a “apontar o dedo”. Ele simplesmente não quer desagradar porque, no fundo, valoriza mais as relações do que os princípios. Em termos morais, estará um furo acima do primeiro pragmático, mas quantos abaixo ainda daquela palavra virtude a que se diz alérgico?

domingo, outubro 18, 2009

Onde Merhan se perdeu


No filme Bassidji, de Mehran Tamadon, acabado de ver no DocLisboa, o realizador (um secularista que se vai assumindo) estabelece um diálogo com militantes xiitas. Estes têm uma argumentação surpreendentemente lógica, mas eu não sei se Tamadon percebeu onde exactamente perdeu o debate com eles (porque claramente o perde). Quando um clérigo lhe pergunta se o bem se procura (e encontra) individualmente ou colectivamente, Merhan responde "colectivamente" (afinal, há outro ismo que acompanha o seu secularismo). A partir daí, não há caminho para vencer a lógica dos militantes.

sexta-feira, outubro 02, 2009

Belém rules


48 horas depois da comunicação ao País do presidente da República, começa-se a perceber um pouco todo este caso. Críticas apressadas dos comentadores à parte, o Presidente deu no seu discurso um sério e público aviso ao Governo e ao partido que o suporta de que não tolerará que o envolvam na luta partidária. Depois da reacção inicial, em que a medo quis responder no mesmo tom, o PS já está a recuar em toda a linha e a querer arrumar o caso, colocando a figura do Presidente acima de toda a polémica (do que a prestação de José Magalhães esta noite na SICN é sintomática). O encontro de hoje entre o Presidente e o Primeiro Ministro terá já ocorrido sob o signo desta demarcação do terreno presidencial, eficazmente defendido por Cavaco Silva. Esta vontade do mais alto magistrado do Estado de defender o estatuto constitucional da Presidência perante os ataques dos lobos da partidocracia socialista é um alto serviço político ao País (que mesmo alguns partidocratas do PSD têm dificuldade de entender). E dá bem a medida da mesquinhez e da insignificância de comentários como os que ontem ouvi ao Carlos Abreu Amorim na RTPN, convidando Cavaco Silva a «terminar com dignidade o seu mandato». Quando o dedo aponta para a Lua, estes imbecis olham para o dedo. Os lobos são mais inteligentes e, já percebendo até onde afinal podem ir, moderaram a sua ambição voraz e baixaram a cabeça.

domingo, setembro 27, 2009

Um urrah! sereno


O resultado do C.D.S. (terceira força política parlamentar e em votos, acima dos 10% e à frente do PC e do BE) seria sempre importante, mas é especialmente importante nas actuais circunstâncias políticas do País. Relevante é a presença de eleitos em grande número de círculos, o que põe o partido no caminho para voltar a ser uma força política nacional (a eleição de 1 deputado na Madeira e de outro no Algarve é para isso significativa). Importante também é a alternância não ter ficado resolvida dentro do «bloco central» socialista/social-democrata, para o que o C.D.S. muito contribuiu.

sexta-feira, setembro 18, 2009

domingo, agosto 30, 2009

O pessimista realista

Acabei de ler, em primeira mão, o livro Portugal Que Futuro? (Objectiva, a etiqueta das edições gerais da Santillana), de Henrique Medina Carreira (M.C.), entrevistado por Eduardo Dâmaso (que, fazendo perguntas tolas e emitindo opiniões primárias, faz bem o papel de vox populi para levar M.C. a comentar ideias vulgares); apesar de tiques intervencionistas e proteccionistas, M.C. revela a lucidez habitual sobre a situação do País e parece dar boas ideias no combate à corrupção (incriminação do enriquecimento ilícito com inversão do ónus da prova para detentores de cargos públicos, p. 173).

terça-feira, junho 23, 2009

quarta-feira, junho 17, 2009

João Paulo de Abreu e Lima (1922-2009)


Lembrar outro tio ainda mais recentemente falecido, e também mais próximo, com um obituário de Jofre de Lima Monteiro Alves.

Que saudades, Poupa, vou ter das nossas intermináveis discussões entre o "facho" e o liberal...!

Encontrar um tio no Youtube...


E aqui também. Obrigado, Jofre.

domingo, maio 31, 2009

O Congresso Protestante Português (1909)


A primeira produção audiovisual da Sociedade Eduardo Moreira, para o centenário do grande evento, ainda realizado sob a monarquia constitucional. O Rúben Baptista de Oliveira, devidamente assistido pelo Timóteo Cavaco, foi o realizador e produtor. A locução é de Silas Oliveira. Destaque para a frase de Eduardo Moreira que é citada no filme.

terça-feira, março 31, 2009

A crise e os off-shore

Nuno Fernandes (professor de finanças na IMD, Suíça) põe os pontos nos ii:

«Acho importante lembrar que a maior parte dos problemas actuais teve origem em instituições financeiras domiciliadas no país onde a supervisão financeira é mais estrita e dispõe de mais recursos - os EUA. Não foram os "hedge funds" nem os paraísos fiscais minimamente responsáveis pela magnitude da mesma. Aliás, a maior parte das perdas estão a ser assumidas por fundos de investimento normais, e também infelizmente por fundos de pensões.

Não foi também por falta de transparência que grande parte das instituições caiu em desgraça, ou sofreu perdas avultadas. Grande parte do problema deriva de ninguém questionar como é que dois activos, ambos considerados de risco (quase) nulo, ou seja, de "rating" AAA, podiam dar remunerações diferentes. A informação estava disponível na maioria dos casos mas foi ignorada. […]

Quanto aos paraísos fiscais, penso que estão mais alinhadas as posições. O que esta crise actual trouxe de novo, foi a grande ansiedade por recursos, em todos os Governos ocidentais, dado o enorme esforço que todos os "bailouts" (resgates) e ajudas ao sector financeiro causam nos orçamentos públicos. Assim, a perda de receitas fiscais devida à existência de paraísos fiscais, onde o capital fica isento de impostos, é uma afronta aos governos da UE e EUA.»

quinta-feira, março 26, 2009

Um primeiro-ministro desvalorizado e desvalorizador


Daniel Hannan, membro conservador (britânico) do Parlamento Europeu, dirigindo-se com desassombro e muito acerto ao primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Comentário sobre a história monetária portuguesa (2.ª metade do século XIX)

Segue-se um comentário a Jaime Reis, «Aspectos da história monetária portuguesa da segunda metade do século XIX», Análise Social n.º 125-126 (1994), pp. 33-54, texto não referido por mim aqui (tendo então preferido referir-me a A evolução da oferta monetária portuguesa, 1854-1912). O autor adopta M1 para efeitos de oferta monetária (inclui «todos os meios de pagamento, quer tenham poder liberatório legal ou não, e inclui, portanto, as notas e a moeda metálica em poder do público [H], assim como os depósitos à ordem no sistema bancário [D]», p. 35 [a estes subtrai a reserva em caixa dos bancos, R], insistindo, contra Nuno Valério, que o ouro remanescente após 1891 deve ser incluído na oferta monetária:

«A avaliação das determinantes do crescimento da oferta monetária que aqui fazemos segue a orientação clássica de [Philip] Cagan e [Milton] Friedman. Nesta perspectiva, em qualquer momento, o valor de M1 é dado pelo produto de H, a base monetária, por um factor K, conhecido pela designação de multiplicador monetário. Os valores assumidos por K resultam, por sua vez, da interacção de duas variáveis: o coeficiente de caixa do sistema bancário R (reservas de caixa/depósitos à vista) e o coeficiente de numerário do público C (moedas e notas detidas pelo público/oferta monetária total). Nesta abordagem torna-se possível decompor as variações de M1 pelos contributos dados pelas variações, respectivamente, de H, C e R.» (p. 39).

Em Portugal, neste período, foi H que fez crescer a oferta monetária, enquanto D contribuiu com «menos de 10% da variação de M1 para 1854-1912» (em Inglaterra, c. 20%) e «o valor dos depósitos à ordem nunca excedeu os 15% da oferta monetária total» (valor médio 7%) – estas características do mercado financeiro português são consideradas por Reis como um desaproveitamento das oportunidades do sistema e um sinal da sua pouca sofisticação (considera, por exemplo, p. 41, as reservas em caixa dos bancos demasiado altas – entre 56 e 32%, longe da «regra do terço que a sabedoria bancária do século XIX aconselhava para estas instituições»). O facto de a baixa de R anteceder a eclosão de crises bancárias como as de 1876 e 1891 parece ser para Reis resultado de excessiva prudência do público (que perdia confiança no sistema) e não uma contradição com as ideias de moeda elástica que defende e que, afinal, também tiveram eco e prática em Portugal. O crescimento do ouro em circulação entre 1854 e 1890 é visto como «elevada elasticidade da procura de moeda em relação ao rendimento evidenciado pelos portugueses» (p. 42), apesar daquele crescimento ser de 2,69% ao ano e não andar, assim, muito longe do crescimento do produto como recentemente contabilizado para o mesmo período. As autoridades são consideradas «passivas» em termos monetários por apenas terem cunhado na Casa da Moeda 7900 contos de ouro face aos 75,000 em soberanos que entraram no País (mas, independentemente de saber como, porque haveriam as «autoridades» de o fazer por outros motivos que não fossem simbólicos se os soberanos tinham curso legal? [pp. 42-43]). Outra faceta desta «passividade» segundo Reis era a abstenção de equilibrar com intervenções “elásticas” (digo eu) as oscilações na circulação do metal precioso, cuja necessidade parece achar tão óbvia que não perde tempo a explicar. Já na relação da persistência do défice comercial paralelamente ao crescimento do ouro em circulação, Reis relaciona isso com a recepção de remessas de emigrantes e sobretudo com o influxo de capitais da “era fontista”, não com o crescimento real da economia: «À semelhança do que aconteceu nalguns outros países aderentes ao padrão-ouro, a expansão de M1 em Portugal foi financiada, em boa medida, por importações de capital em que o Estado desempenhou um papel de relevo» (p. 45) – como isto é uma explicação aceitável se o ouro circulava em Portugal basicamente nas mãos do público (como o autor reconhece), é o que é difícil de compreender e que, em todo o caso, torna estranho o anterior comentário sobre a ausência de medidas elásticas que “corrigissem” as oscilações do metal precioso em circulação (como iria o Estado corrigir um movimento de que era ele próprio o interessado?). A este propósito, o autor diz que, depois de 1891, as emissões de notas tenderam a «compensar as diminuições da moeda de ouro ocasionadas pela exportação, havendo por resultado um pequeno crescimento líquido da base monetária, a 0,6% ao ano» (até 1912) (pp. 45-46), parecendo não ter ideia de que a relação causa/efeito foi a contrária, motivada pela “lei de Gresham” e pelo facto óbvio de que as “autoridades” não emitiam notas para estabilizar nominalmente o stock monetário, mas por simples necessidades do Tesouro – aliás, di-lo: «[...] facilmente se prova que foi estreita a relação entre os aumentos sucessivos da dívida estatal ao banco [de Portugal] e as emissões de notas por parte deste» (p. 46).

É o prisma quantitativo da análise do autor que o leva a considerar benéfico (em termos monetários, não orçamentais) na mesma p. 46 o «súbito aumento de emissão fiduciária» a partir de 1891 e que isso tenha atenuado «a gravidade e a duração da crise económica» (quando, numa análise qualitativa, isto era a expressão da própria crise financeira). Daí a surpresa revelada pelo autor de os responsáveis políticos não terem aproveitado a elasticidade da inconvertibilidade para descontrolarem ainda mais as contas públicas – é que os segundos tinham consciência dos malefícios (desde logo nos preços) das práticas sofisticadas de gestão do crédito que o autor toma por modernização financeira. Para relacionar esta evolução monetária com o crescimento da economia, Reis considera a quantity theory of money, de acordo com a qual «a prazo as variações do produto real e dos preços juntas devem equivaler às da moeda e da sua velocidade de circulação, ou seja, m + v = p + y, onde m, v, p e y são as taxas de variação, respectivamente, da moeda, da velocidade de circulação, dos preços e do produto real» (p. 48), e a óptica “monetarista” (entre outros, de M. Bordo, em detrimento da keynesiana-estruturalista de Rostow e Lewis) de acordo com a qual «a moeda é neutra em relação ao comportamento do PNB real, cuja determinação pertence a factores reais». O índice de preços de 1860-1890 (calculado por D. Justino) revela-se independente de M1, estando relacionado com o nível dos preços internacionais:

«[...] durante o período do padrão-ouro, a moeda cresceu mais rapidamente do que o produto real, sem que isso se tivesse reflectido num movimento ascensional dos preços. De facto, com câmbios fixos, dificilmente esse movimento poderia acontecer, pelo que se tem de concluir que o ajustamento se fez através de uma redução na velocidade de circulação da moeda [...]. Conclui-se também que os agregados monetários não poderão ter constituído um “travão” ao crescimento do PNB, antes ter-lhe-ão sido favoráveis, uma vez que tiveram taxas de crescimento// mais altas. A evolução descendente das taxas de juro de longo prazo, mais pronunciado do que a das praças estrangeiras, corrobora esta afirmação» (pp. 48-49).

Aqui, interessaria investigar se esta baixa da taxa de juro se deu em virtude da relativa prática elástica dos bancos, que tendia a afectar a “neutralidade” do dinheiro (a referir infra) ou se, como parece mais provável, das condições de confiança criadas pelo padrão-ouro, como a estabilidade dos preços parece mostrar. Para Reis, a procura de moeda de ouro («com uma remuneração igual a zero») – pouco menos de 50% do aumento anual médio do PNB – penalizou investimentos mais produtivos, mas a questão é saber quais no cenário económico de então (digo eu), parecendo haver aqui um problema teórico, a implícita distinção entre poupança e investimento (algo keynesiano... – cf. Henry Hazlitt, The Failure of the “New Economics”: An Analysis of the Keynesian Fallacies, Nova Iorque: D. Van Nostrand, 1959, pp. 78ss). Após 1891, os preços internos deixaram de ser determinados pelos internacionais, o que é «confirmado pelos testes estatísticos sobre a existência desta ligação» (p. 50), e os preços aumentaram sobretudo na década de 90 (por efeito da desvalorização cambial e do proteccionismo) e as taxas de juro de longo prazo inverteram a anterior tendência descendente; a velocidade de circulação (v) também aumentou, contrariamente à tendência anterior, o que só se inverteu depois de 1945 – Reis explica isto pela impossibilidade de ajustamento das variações da moeda e do produto se fazerem por via dos preços (tornados rígidos ou ascendentes por via administrativa), secundarizando a análise qualitativa dos efeitos de circulação de uma moeda fiduciária não enquadrada num regime de câmbios fixos (p. 51). (A propósito, só o decreto de 9 de Junho de 1931 confiou ao Banco de Portugal o dever de assegurar a estabilidade monetária e cambial.) É, mais uma vez, a análise meramente quantitativa que permite a Reis, sobre a questão da estabilidade relativa dos sistemas monetários pré e pós-1891, concluir que «a moeda apresenta maior estabilidade [quantitativa] no segundo período, mas os preços denotam uma maior estabilidade no primeiro» e que «a mudança de regime monetário não alterou seriamente o funcionamento da economia» (p. 52); mesmo assim, à desvalorização cambial o autor assaca correctamente a responsabilidade de se ter reforçado «a má alocação de recursos que se vinha seguindo há décadas» (p. 53) e as dificuldades acrescidas de acesso a investimento estrangeiro.

As deficiências desta análise quantitativa tornam-se claras se se considerarem de outra perspectiva as questões da taxa de juro e sobretudo da “neutralidade” do dinheiro. Knut Wicksell, baseado na teoria do juro de Böhm-Bawerk, estabeleceu que «If it were not for monetary disturbances, the rate of interest would be determined so as to equalise the demand for and the supply of savings» (F. A. Hayek, Prices and Production, 1.ª ed. 1931, Nova Iorque: Augustus M. Kelly Publishers, 1967, p. 23); numa economia monetária, esta taxa natural ou de equilíbrio só não coincide com a taxa de juro praticada (“Geldzins”) se a quantidade de dinheiro disponível para efeitos de capital for arbitrariamente alterada pelos bancos (ou pelo Estado através deles), deixando aquela de ser “neutral” nos seus efeitos nos preços (os bancos fazem isto baixando a taxa de juro praticada, i.e., emprestando mais do que aquilo que lhes foi confiado, criando “moeda escritural”). A coincidência das taxas natural e praticada não garantiria que o nível de preços não sofresse alterações, apenas que estas não teriam causas monetárias (algo que Wicksell já não percebeu). No caso de não ocorrer aquela coincidência por interferência bancária (ou estatal), baixando a taxa praticada, a subida dos preços ocorre por meio do empréstimo do dinheiro criado, que os empresários gastam em produção, ocasionando o que Wicksell denominou “poupança forçada”. Mises desenvolveu a teoria de Wicksell no sentido de estudar as implicações da não coincidência das taxas nos preços dos bens de consumo e dos bens de produção (Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, 1912); neste sentido, diz Hayek:

«as soon as one once begins to think about it that almost any change in the amount of money, wether it does influence the [general] price level or not, must always influence relative prices. And, as there can be no doubt that it is relative prices which determine the amount and the direction of production, almost any change in the amount of money must necessarily also influence production.// [...] For when we investigate into all the influences of money on individual prices, quite irrespective of wether they are or are not accompanied by a change of the price level, it is not long before we begin to realise the superfluity of the concept of a general value of money, conceived as the reverse of some price level.// [...] The problem is never to explain any “general value” of money but only how and when money influences the relative values of goods and under what conditions it leaves these relative values undisturbed, or, to use a happy phrase of Wicksell, when money remains neutral relatively to goods. Not a money which is stable in value but a neutral money must therefore form the starting point for the theoretical analysis of monetary influences on production, and the first object of monetary theory should be to clear up the conditions under which money might be considered to be neutral in this sense» (Hayek, Op. Cit., pp. 28-30).

Esta concepção de dinheiro “neutro” foi trabalhada por J. G. Koopmans e W. G. Behrens (anos 30), embora Menger e a Escola de Lausana (com Walras à cabeça em torno da distinção entre numeraire e monaie) já tivessem preparado esta questão; trata-se de uma questão teórica cuja aplicabilidade à política monetária não é simples. Hayek chama atenção para o facto de o dinheiro modificar a identidade entre oferta e procura que existe na troca directa (barter) por isolar as duas partes de qualquer transacção («the one-sided effects of money» na expressão de von Wieser) e tornar-se assim um elemento que se “interpõe” em qualquer transacção e que afecta qualquer dos movimentos em que aquela pode ser decomposta e pode ser afectada pela política monetária, sendo que

«It is quite conceivable that a distortion of relative prices and a misdirection of production by monetary influences could only be avoided if, firstly, the total money stream remained constant, and secondly, all prices were completely flexible, and, thirdly, all long term contracts were based on a correct anticipation of future price movements. This would mean that, if the second and third conditions are not given, the ideal could not be realised by any kind of monetary policy.» (Hayek, Op. Cit., p. 131).

Neste sentido, a história monetária portuguesa na segunda metade do século XIX deveria levar em linha de conta o efeito das alterações qualitativas no mercado monetário sobre a “neutralidade” do dinheiro: o padrão-ouro seria um importante elemento disciplinador em ordem a alcançar-se esse objectivo, enquanto as práticas bancárias elásticas funcionariam claramente como elementos de distúrbio (que as crises de 1876 e 1891 provam) e a inconvertibilidade como definitiva impossibilidade de concretizar aquele objectivo – embora as primeira e terceira das condições enumeradas por Hayek fossem, com certos limites, asseguradas pelo padrão-ouro. A análise monetária do ciclo, da perspectiva “austríaca”, leva ainda em linha de conta clarificações conceptuais de Menger sobre o valor e o capital que são relevantes para esta discussão:

«We therefore have the principle that the value of goods of higher order is dependent upon the expected value of the goods of lower order they serve to produce. Hence goods of higher order can attain value, or retain it once they have it, only if, or as long as, they serve to produce goods that we expect to have value for us. […] The transformation of goods of higher order into goods of lower order takes place, as does every other process of change, in time. The times at which men will obtain command of goods of first order from the goods of higher order in their present possession will be more distant the higher the order of these goods.» (Carl Menger, Principles of Economics, Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 2007, III, pp. 150 e 152).

Este considerando permite esboçar a hipótese de que a ausência de maior “investimento produtivo” sob o padrão-ouro (e a preferência por investir/poupar em ouro) se devia a condições percepcionadas pelos agentes como pouco propícias a uma procura de bens de consumo que justificasse o investimento em bens de produção (algo, aliás, que o próprio Reis já sugerira ao estudar a industrialização portuguesa). Neste contexto, é relevante outra clarificação, sobre a diferença entre capital (investido ou com potencialidade para tal) e bens duráveis associados a um rendimento:

«The most important difference between capital on the one hand and items of wealth that yield an income (land, buildings, etc.) on the other is that the later are concrete durable goods whose services themselves have both goods character and economic character, whereas capital represents, directly or indirectly, a combination of economic goods of higher order (i.e., complementary quantities of these goods) whose services also have economic character and therefore yield income, but whose productivity is of an essentially different nature than that of durable wealth that is not capital. […] The fact that under developed trading conditions capital is usually reckoned in terms of money and also most frequently offered in the convenient form of money to persons requiring it, has resulted in capital generally being interpreted in ordinary life as a sum of money. It is plain that this concept of capital is much too narrow, and that a particular form of capital has been elevated to the status of the genus itself. […]» (Menger, Op. Cit., Apêndice E, p. 304).

Assim, o ouro, dadas as suas características sui generis com elevada qualidade monetária (cf. Id, Op. Cit., p. 280) e pelo qual o público mostrava ter preferência, pode ser considerado um capital detido com duplo potencial para suportar investimento no futuro (assim as oportunidades aparecessem) e um activo monetário de fácil conversão em liquidez para aquisição de bens de consumo, revelando-se em alto grau, no ambiente económico português da segunda metade do século XIX, uma opção de investimento bastante racional – e, na medida em que afectou os custos de oportunidade deste investimento, o fim do padrão-ouro só pode ter prejudicado, por ausência de opções tão eficientes, a poupança de largos sectores da sociedade portuguesa, o que tem de influenciar a nossa apreciação das diferenças qualitativas entre os dois regimes monetários pré e pós-1891.

Leitura complementar: Luís Aguiar Santos, Política monetária e ciclo económico: uma tentativa de explicação da crise financeira de 1891 (ou esta versão na Análise Social).

segunda-feira, fevereiro 23, 2009

Explicação da crise financeira


Só falta explicar melhor como os políticos e os bancos centrais induziram a Banca a estes caminhos sofisticadíssimos...

sexta-feira, janeiro 30, 2009

O ouro e o tsunami de papel

Contrariamente ao petróleo, o preço do ouro tem estado a subir consistentemente nos últimos meses. Nos últimos dias, esta subida tem sido pronunciada. O ouro é um refúgio para investidores que queiram congelar o poder aquisitivo das suas poupanças, resguardando-as quer da inflação monetária quer da volatilidade bolsista. Isto acontece porque o valor real do ouro é relativamente estável no longo prazo, sendo a subida do seu valor expresso nas moedas fiduciárias correntes geralmente expressão da depreciação absoluta daquelas, isto é, da sua perda de poder aquisitivo.

Ora, o crescimento acentuado da emissão monetária do último ano (nomeadamente pela Reserva Federal norte-americana e pelo Banco Central Europeu), que suportou os inúmeros “bailouts” de um e outro lado do Atlântico, terá consequências inevitáveis no poder aquisitivo do dólar norte-americano e do euro. Outra forma de dizer isto é dizer que os índices de preços ao consumidor expressos nestas moedas, por mais engenharia estatística que se faça com o cabaz de bens que serve para os calcular, vão ressentir-se mais tarde ou mais cedo, acusando uma subida generalizada e acentuada dos preços de todos os bens. As preocupações recentes com a deflação – aparente no comportamento estranho e insustentável do preço do petróleo no último semestre – vai ser, assim, com toda a probabilidade, substituída com grande rapidez por uma acentuada inflação. Neste recuo do preço do petróleo e na retracção estatística muito recente dos índices de preços ao consumidor podemos estar a ver o recuo que nos tsunamis antecede a grande vaga destruidora. Esta deflação aparente e momentânea é um efeito necessário à formação da grande reacção inflacionista aos desmandos da política monetária dos últimos dez ou quinze anos, aceleradíssimos no último ano.

O crédito fácil que levou à presente crise financeira pedia liquidações, mas a política monetária recente quis evitá-las artificialmente, acelerando os erros responsáveis pela crise e inundando o sistema bancário de mais dinheiro que os políticos queriam ver nas empresas e nas ruas. O valor desse dinheiro vinha decaindo claramente nos últimos cinco anos, como o preço do ouro denunciava e a nossa intuição de consumidores desconfiava. Os biliões e triliões que entretanto foram acrescentados à bolha monetária – e o comportamento do ouro – dão-nos a infeliz certeza de que está quase a chegar a onda inflacionista. Se esta se tornar uma hiper-inflação não seria para admirar.

quarta-feira, janeiro 28, 2009

Portugal continental em 1808


Carta militar das principaes estradas de Portugal [Material cartográfico / grv. Romão Eloy de Almeida. - Escala [ca 1:470000]. - [Lisboa : s.n., 1808]. - 1 carta em 2 f. : p&b ; 72x135 cm cada f http://purl.pt/6302. - O exemplar com a cota C.C. 1226 R. encontra-se seccionado em quadrados e colado em tela. CDU 656.11(469)(084.3) 912"18"(084.3) 914.69(084.3) [Biblioteca Nacional]. Via Lagos Militar.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

O "bailout" em perspectiva histórica

No Inflation Data, um artigo muito interessante que compara os recentes bailouts ("borlas") do governo federal norte-americano com os grandes gastos públicos de toda a história da União (The Real Cost of the 2008 Bailout - Hyperinflation, por Olivier Garrett). Excertos:

«Three months before the recession was officially declared, Paulson and Bernanke have embarked on the largest bailout program ever conceived with the blessing of a lame-duck president and a complicit Congress - a program which so far will cost taxpayers $8.5 trillion. This staggering sum encompasses: loans backed by worthless assets ($2.3T), equity investments in bankrupt companies with negative net worth ($3.0T), and guarantees on crumbling derivatives and other hollow collateral ($3.2T).

[...]




As illustrated above, you can see that in today’s dollars, we have already committed to spending levels that surpass the cumulative cost of all of the major wars and government initiatives since the American Revolution.
Recently, the Congressional Research Service estimated the cost of all of the major wars our country has fought in 2008 dollars. The chart above shows that the entire cost of WWII over four to five years was less than half the current pledges made by Paulson and Bernanke in the last three months!»