quinta-feira, junho 05, 2008

Introdução à teoria das categorias (Orlando Vitorino)

Imagem via Leonardo.

[Orlando Vitorino, Exaltação da Filosofia Derrotada, Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1983, II, 1, pp. 85-93.
As notas de rodapé foram colocadas entre parênteses junto das frases a que dizem respeito.]

Não há ciência que não tenha uma teoria das categorias.

A noção de categoria, bem como a respectiva classificação, têm origem em Aristóteles mas foram diferentemente concebidas na modernidade, primeiro por Duns Escoto e depois, em termos mais decisivos, por Emanuel Kant. Por isso em Kant, mais do que em Descartes, situaram os modernos o final da era do pensamento aristotélico. Na verdade, a diferença que separa as duas concepções e classificações das categorias é a diferença que separa a filosofia moderna da filosofia clássica.

Ambas situam o ponto de partida do pensamento categorial na relação entre as categorias e os juízos lógicos, pois são os juízos lógicos a forma que adquire todo o conhecimento da realidade, e conhecer consiste em dar um predicado a um nome. Mas logo no ponto de partida elas invertem o sentido da relação originária, a filosofia clássica explicando os juízos lógicos pelas categorias, a filosofia moderna deduzindo as categorias dos juízos. A teoria kantiana estabelece, primeiro, uma classificação dos juízos e sobre ela forma, depois, uma classificação das categorias. A teoria aristotélica não pode deixar de ver nessa ordem um manifesto absurdo, uma vez que as categorias se destinam a determinar como é possível formar os juízos ou como é possível conhecer, pelo predicado, o que é isso que o nome designa. Álvaro Ribeiro dizia que a teoria das categorias é uma teoria da predicação.

Uma abissal, mas significativa, divergência assim se observa: na filosofia clássica, representada por Aristóteles, o pensamento precede o conhecimento, que dele resulta; na filosofia moderna, representada por Kant, o conhecimento é anterior ao pensamento e constitui seu conteúdo e objecto [Esta abissal divergência manifesta-se mais expressamente quando Hegel vem opor ao princípio de não contradição aristotélico, segundo o qual «nada há que possa ser e não ser ao mesmo tempo», o princípio da identificação do ser e do não ser, segundo o qual «tudo é e não é ao mesmo tempo». O princípio de não-contradição afirma Aristóteles que é princípio supremo, aquele de que toda a lógica depende. No princípio de contradição funda Hegel a dialéctica, sua maneira de entender a lógica. O paralelismo dos termos utilizados mais acentua a deliberada e radical oposição. (…)].

Às inteligências modernas afigura-se que a filosofia ou é dispensável ou recebe da ciência a garantia de uma positiva e real veracidade. E na impossibilidade de entenderem como o espírito é real, afigura-se-lhes também que garantia correspondente não está ao alcance da filosofia clássica. O certo é, contudo, que a ciência moderna carece de razão de si, uma vez que é anterior ao pensamento. E ao reconhecer, como acontece nos nossos dias, que essa carência – geralmente designada por «crise dos fundamentos da ciência» – faz dos caminhos que ela segue «caminhos que levam a nenhures», a ciência vê-se também impedida de recorrer à filosofia que neles a lançou, uma vez que a lançou dispensando-a de fundamentos ou razão de si.

A filosofia clássica, pelo contrário, situa o pensamento, não apenas antes da ciência e do conhecimento em geral, mas antes até da mesma lógica, uma vez que a formação dos juízos depende das categorias. É, na verdade, uma imagem a corrigir aquela que, formada pela escolástica medieval, faz do aristotelismo e, por acréscimo, de toda a filosofia clássica, um pensamento saturado de logificação.

Foi, pois, a partir de uma relação indo das categorias para os juízos que a teoria aristotélica abriu caminho. Reconhece ela que o pensamento tem sempre em vista ou o universal ou o geral e sem isso não é pensamento. O que significa: só é possível pensar o nome singular, ou a coisa que se apresenta em sua particularidade e solidão, de cujo predicado conheçamos ou a universalidade ou a generalidade dos nomes que ele pode predicar. Por isso se chama predicado, o que é dito antes. Sem esta condição, nenhum conhecimento contém aquilo que, apresentando-se como um juízo, não passa de um dito, seja ele, num exemplo frequente na escolástica aristotélica, «Sócrates é mortal», seja num exemplo utilizado pela lógica kantiana, «5+2=7».

O dito não é mais do que a proposta ou, na expressão escolástica, a proposição de um juízo. Para que a proposta seja aceite, para que a proposição se torne um juízo, temos de saber que mortal é o predicado de todos os homens ou que 7 é o predicado de todas as somas de 5 e 2. Temos de saber que, segundo a universalidade, todos os homens são mortais ou que, segundo a generalidade, a ideia de homem é a ideia de um ser mortal. Daqui resultam duas conclusões que, com grave solenidade, podemos afirmar serem as condições de toda a realidade que ao homem é dado pensar e de todo o pensamento seguro de si:

1.º – Que não há predicados exclusivos de um único ser ou coisa, isto é, que não há nenhum predicado que convenha a um único nome e a mais nenhum outro, pois, se tal acontecesse, a actividade mental , caso se pudesse ainda chamar assim ao que não seria mais do que uma simples presença, limitar-se-ia à passiva e inerte observação da simultânea existência da imensa variedade de seres que há no mundo, como acontece aos vegetais e a grande parte dos animais.

2.º – Que não há nenhum predicado que convenha a todos os seres e coisas. Pois, se assim acontecesse, tudo seria o mesmo.

Numa e noutra conclusão, o predicado obriga o nome que predica a situar-se nas condições em que ele, não sendo exclusivo desse único nome nem atribuível a todos os nomes, exprime ou uma relação universal ou uma ideia. Tais condições são as condições para a aceitação da proposta ou proposição, precedem portanto a formação do juízo, são as categorias.

Ao formar as categorias a partir dos juízos, e não os juízos a partir das categorias, a lógica kantiana, ao mesmo tempo que altera a noção de categoria, torna-se inútil e supérflua. Os ditos, propostas e proposições aparecem imediatamente como juízos, o que equivale a dar por conhecido e por real o que nenhuma garantia tem de o ser. Foi isto o que, por outras vias, David Hume demonstrou na sua crítica às ciências modernas provocando, como se sabe, a Crítica da Razão Pura, de Emanuel Kant. A razão pura seria a razão da lógica aristotélica, à luz da qual Hume negava a necessidade ou a fundamentação das modernas leis científicas. Criticada a razão pura, ficaria destituída a lógica aristotélica e, em seu lugar, vai tentar-se instituir – e foi essa a tarefa do idealismo alemão – uma lógica que terá de se confinar aos limites em que é possível o conhecimento característico das ciências modernas e será movida por uma razão puramente antropológica. Tais limites são os da sensitividade, o espaço e o tempo, a que Kant chamou «as formas transcendentais da sensibilidade». Tal razão é a que faz das categorias «conceitos do intelecto», se situa dentro dos limites da subjectividade e é tão humana que por «demasiado humana» a condenou a mesma filosofia moderna no seu momento nietzcheano de loucura, ou «divina mania», com que, apesar de tudo, os velhos deuses entenderam agraciá-la [Foi na Ciência da Lógica, de Hegel, que culminou a tentativa iniciada por Kant para a formação de uma lógica adequada às ciências modernas. Mas os cientistas já estavam possessos do orgulho que lhes suscitaram os êxitos obtidos no domínio das forças da natureza e “ignoraram” a genial façanha de Hegel. Quando, mais tarde, esse orgulho começou a ver-se abalado pela previsão das finalidades a que tais êxitos unicamente conduziam e, num certo esforço de reflexão, reconheceram o que hoje designam por «crise dos fundamentos da ciência», os pensadores científicos esboçaram um «regresso a Kant» mas nunca apelaram para a lógica de Hegel. O mesmo «regresso a Kant» depressa foi abandonado. Onde a ciência moderna sempre depositou as suas esperanças foi na matemática, em vão confiando que ela lhes forneceria a fundamentação que a lógica aristotélica assegura à ciência clássica. Isso explica as sucessivas tentativas para fazer da matemática uma lógica: a dos positivistas do Círculo de Viena, a de Bertrand Russell e Alfredo N. Whitehead, com os famosos Principia Mathematica, e, mais recentemente, as de T. Kuhn e de Karl Popper, este com a sua Lógica da Descoberta Científica. Dentre os responsáveis por estas vãs tentativas, apenas Whitehead abandonou a via de nenhures em que todas elas inevitavelmente se perdem, não hesitando em reconhecer, nessa obra-prima do pensamento científico que é A Ciência e o Mundo Moderno, que a ciência ainda não conseguiu dar resposta à crítica de David Hume. Quem mais claramente enunciou a questão a que todas essas tentativas tentam dar resposta foi Karl Popper: «Qual o critério a aplicar para avaliar da cientificidade de uma qualquer proposição?» O leitor encontra, no texto que está lendo, o que esta questão pode logicamente significar./ Ao longo deste processo, há uma constante: o ataque à lógica aristotélica. Mas é impressionante como esses valentes combatentes ignoram aquilo que combatem. Um exemplo de tal ignorância é o insulto galhofeiro, mas muito apreciado, de William James quando, depois de reduzir a teoria do silogismo a um jogo de palavras, julga poder anatemizá-la dizendo que «a palavra cão não morde». Outro exemplo é a frequente repetição de determinações aristotélicas traduzidas em vazia linguagem matemática como acontece quando Bertrand Russell, a propósito da quadratura do círculo, não faz mais do que anunciar, mas como sendo uma original descoberta sua ou só possível à sua lógica matemática, o princípio da não-contradição, dizendo: «não existe um x tal que seja ao mesmo tempo quadrado e redondo».].

Se é deste modo que a doutrina das categorias perdura na filosofia moderna, temos de reconhecer que tal perduração pouco ou nada tem a ver, em rigor, com o pensamento categorial. Ainda admitiríamos que representasse uma involuntária homenagem à filosofia clássica se ela não se explicasse pela desesperada verificação de que as ciências modernas não possuem fundamento, nem razão de si, nem finalidade positiva. E desde o seu já remoto início, a filosofia que lhes deu origem sofre essa desesperada verificação. O que as caracteriza é a recusa do real como uma totalidade incindível, dividindo-o em tantos sectores quantas as ciências que de cada um deles fazem seu objecto. Ora as categorias residem no ponto de encontro de todo o real com todo o pensamento, entendendo por todo o real que nada é real se não o implicar e por todo o pensamento que nada é pensamento se não o implicar. O que toda a filosofia moderna pretendeu foi que cada ciência e respectivo sector da realidade sejam o que são sem implicarem a totalidade do pensamento e do real e, apesar disso, lhes correspondam suas próprias e exclusivas categorias. Pretendeu escapar à primeira conclusão extraída da necessidade das categorias que há pouco enunciámos: a de que não há predicados exclusivos de um único ser ou coisa. O derradeiro filósofo moderno, M. Heidegger, ainda defendeu essa pretensão. Disse ele: «As ciências particulares estudam diversos campos objectivos […]. Em nosso entender, reconhece-se que cada um destes campos objectivos pertence a determinados sectores da realidade. A estes correspondem, segundo a sua especificidade, uma estrutura e uma constituição determinadas. Vemo-nos assim perante uma tarefa que geralmente se designa pelo nome de doutrina das categorias [M. Heidegger, Traité des Catégories et de la Signification chez Duns Scott, trad. Francesa, ed. Gallimard, Paris, 1970, pág. 42].

Mais adiante, percorrida a descrição desta tarefa, Heidegger conclui: «Uma conclusão necessária nos aparece: as dez categorias aristotélicas e uma doutrina que nelas se fundamente, revelam-se, não só incompletas, mas também hesitantes nas suas determinações e inexactas porque lhes escapa a consciência de uma distinção entre os sectores da realidade» [M. Heidegger, Ob. Cit., pág. 113].

Esta tarefa de encontrar categorias próprias de cada ciência, e só dela, que Heidegger faz remontar a Duns Escoto, no início da filosofia moderna, não tem lugar na filosofia clássica. O que não significa que, aí, as ciências que dela derivaram, ou tal como dela derivaram, se não distingam entre si. Distinguem-se, sem dúvida, mas mantendo-se em cada uma, incindível, a totalidade do real, pois todas estão igualmente suspensas das categorias lógicas, lugares de encontro de todo o real e todo o pensamento. E quando, na filosofia clássica, se fala das categorias próprias de cada ciência, do que se fala é das modalidades das categorias lógicas que convêm ao distinto conhecimento e à distinta manifestação da totalidade do real próprios de cada ciência. É o caso da ciência económica. Suas categorias dizemos serem a propriedade, o mercado e o dinheiro. Não figuram elas entre as dez categorias lógicas mas são modalidades de três dessas categorias: a propriedade é um modo da substância, o mercado um modo da acção, o dinheiro um modo da relação.

De um outro ponto de vista podemos agora considerar a necessidade das categorias na formação das ciências. Reside ele na permanente actualização em que se encontram a realidade e o pensamento, ou seja, no permanente trânsito da inesgotável potencialidade que eles contêm para o acto em que essa potencialidade se manifesta. A ciência, ao contrário da imagem que dela guarda a opinião moderna, é composta de resíduos ou, como preferimos dizer, de cristalizações dessa actualização e, embora sempre susceptível de ser aperfeiçoada, sempre se mantém na passiva dependência dos insondáveis, insuspeitáveis e imprevisíveis acordos que o pensamento e a realidade vão fazendo nos encontros que entre si estabelecem e são as categorias.

A raiz da palavra categoria alude ao que cai, ao que se situa. Ao que cai ou se situa lá onde recebe a determinação (o fundamento, dizem os modernos) de que é aquilo que está sendo. Porque estando a realidade em incessante manifestação ou actualização, e consistindo a ciência no conhecimento dessa actualização, tem de se concluir que aquilo que cada ciência observa, estuda e conhece se conserva em constante mobilidade. Como pode, então, a ciência estar segura do objecto real que uma vez conheceu ou, o que é o mesmo, como pode estar segura do seu conhecimento, segura de si própria? São as categorias que lhe dão essa segurança.

O que temos perante nós, na economia, é a manifestação da totalidade real que apreendemos na forma designada por economia e é, por sinal, a de mobilidade mais patente entre todas as manifestações do real. Como sabermos, a cada momento, que é da economia que tratamos? Como sabermos que isso de que tratamos é assunto da economia? Sabemo-lo, já o dissemos, porque dispomos das categorias. E acrescentamos agora: porque só tem realidade económica o que cai numa categoria económica, o que é, em qualquer momento, tradutível, redutível ou reversível à categoria onde recebe a sua determinação: à propriedade, ao mercado e ao dinheiro. O que não tiver uma destas determinações, o que não for susceptível de receber um predicado vindo de uma destas três categorias, não é assunto económico.

Há uma articulação entre as categorias. Inalteráveis e imutáveis, de cada uma delas emergem os mediadores que, por caminhos mais directos ou mais sinuosos, por processos mais rápidos ou mais lentos, a articulam com uma outra. São tais mediadores que exprimem a mobilidade incessante do real. As ciências dão-lhes a forma de princípios, de leis e de regras e utilizam-nos como instrumentos de um poder operativo que eles efectivamente possuem. Com a formação mental que a filosofia moderna lhes inculcou, levando-os a terem por finalidade da ciência o domínio das formas mais visíveis da realidade que são os corpos naturais ou os nomes já predicados, os cientistas fazem da ciência só a ciência daqueles mediadores, dos princípios, das leis e das regras a que julgam poder atribuir uma necessidade e até uma eternidade que eles não possuem e só é própria das categorias.

Assim acontece também na ciência da economia. Com uma mentalidade também moderna, com a atenção absorvida pelos mediadores – o capital, a produção, o trabalho, a renda, o câmbio, etc. – os economistas ignoram as categorias ou acabam por ver nelas algo de dispensável e incómodo: a propriedade, há muito que a deixaram de ter em conta; o mercado, não cessam de tentar substituí-lo por um sistema de encomendas; o dinheiro, transformaram-no num sinal convencional. Deste estreito e imperfeito modo de pensar só pode esperar a economia as mais temíveis ameaças, o que explica ter-se já dito ser ela «um assunto demasiado importante para o deixarmos entregue às mãos dos economistas».

Não deixa, contudo, de ser estranho, e quase incompreensível, a ausência de um pensamento categorial entre os teorizadores que com tanto esforço, tanto talento e por vezes génio, formaram e continuam formando a ciência da economia.