quinta-feira, agosto 30, 2007

(True) Queen of Hearts

Na primeira metade do século XX, foi a primeira rainha plebeia do Reino Unido. Nascida fora da aristocracia, tornou-se duquesa por casamento e rainha consorte inesperadamente. Três anos depois, perante as V2 de Hitler que massacravam Londres, proferiu a frase célebre: "The children won't go without me. I won't leave the King. And the King will never leave". De facto, para reinar nos corações, é necessário mais do que glamour e fáceis boas intenções.

Os outros irlandeses...

Protestantes e católicos

Toda a psicologia religiosa dos protestantes está na célebre frase de Lutero, “Ein fest Burg ist unser Gott” [“Uma fortaleza inexpugnável é o nosso Deus”]. Numa variante formal dessa frase está a psicologia religiosa dos católicos: “Ein feste Burg ist unser Kirche” [“Uma fortaleza inexpugnável é a nossa Igreja”]. De facto, os protestantes, para estarem em Deus, não precisam da Igreja; e os católicos, para estarem na Igreja, não precisam de Deus.

quarta-feira, agosto 29, 2007

A ele, que combateu os novos dogmas romanos do século XIX


Para os que gostam de instrumentalizar a memória de Alexandre Herculano a favor de um "neocatolicismo" que triunfou no século XX e que ele combatera à nascença, há a dizer que a Igreja de Herculano terá mais a ver com isto do que com isto. Quanto ao mesmo procedimento com Tocqueville e Acton, seria interessante saber o que o primeiro diria de tais inovações, em 1854 e 1870 (sobretudo se tivesse vivido para ver o I Concílio do Vaticano), já que de Acton sabemos que ficou em "exílio interno" para não chegar à ruptura consumada pelo seu mestre Dollinger (esse outro ilustre "velho-católico" que já é mais difícil pôr ao serviço do papismo).

Estes protestantes, anarquistas e irreligiosos

Serviço religioso da Ordem de Orange, em Armagh (Ulster). Dedicado a todos os "católicos" orgânicos que fazem a Deus o favor de o deixar existir se Ele não prejudicar muito o funcionamento da ordem social. Pede-se desculpa por tanta anarquia e incredulidade neste vídeo...

Conferir.

terça-feira, agosto 28, 2007

O jovem cura e a mãe amargurada

Cena do filme de Claude Bresson "Journal d'un Curé de Campagne" (1951), baseado no livro homónimo de Georges Bernanos. Este diálogo do jovem cura com a condessa, uma mulher madura e amargurada, é uma das coisas mais magníficas que já vi no cinema. Julgo é que o digo mais como cristão do que como cinéfilo. "Donnez tout..."; sem isso não há conversão e sem ela não há libertação.

Ronald Reagan contra a medicina estatista (1961)

O persistente equívoco de Zita

«Mas não me julgue, porque não tem autoridade moral ou ética para o fazer, aquele que não lutou pela liberdade em Portugal quando não a tínhamos, e que passou pela sua geração sem a ver.» (Zita Seabra, Foi Assim, Lisboa: Alêtheia Editores, 2007, p. 437)

Esta é a frase arrogante com que Zita Seabra termina as suas recentes memórias. Sobre estas não farei mais comentários além deste em três frases: Zita Seabra ainda não percebeu que, como militante que foi do PCP, não lutou pela liberdade em Portugal; e que, contrariamente ao que diz, muitos dos que, na sua geração, não alinharam com a oposição que existia defendiam comparativamente mais liberdade do que ela enquanto militante do PCP; quanto ao persistente vício historicista de negar pertença ao seu tempo àqueles que seguiram caminhos diversos dos do socialismo revolucionário («passaram pela sua geração sem a ver») trata-se de uma atitude francamente desprezível - além de tipicamente estalinista.

segunda-feira, agosto 27, 2007

O Protestantismo em Portugal (II): Primeiras manifestações e implantação

A igreja do Torne (Vila Nova de Gaia), o mais antigo edifício protestante do País, foi a sede da congregação metodista de Diogo Cassels desde 1866 e, mais tarde, da escola da mesma congregação (que, em 1880, se juntou à episcopal Igreja Lusitana, na qual se mantém até hoje).

Portugal foi um dos poucos países europeus onde a Reforma protestante do século XVI não se fez sentir, preservando até bem entrado o século XIX a sua unidade religiosa. Em João Ferreira de Almeida (1628-91) encontra-se o primeiro protestante português e a personalidade de maior vulto que abandonou o Catolicismo Romano mas que o fez apenas fora de Portugal; Almeida emigrou para as Índias Orientais holandesas (actual Indonésia) em 1642, onde foi ordenado pastor calvinista e traduziu para o Português o Novo Testamento e parte do Antigo (tal tradução destinava-se à evangelização local, onde o Português era língua corrente). Exceptuando-se a presença de algumas capelanias estrangeiras destinadas a diplomatas e comerciantes estabelecidos ou de passagem, o primeiro foco protestante surgido em Portugal foi o iniciado pelo médico e missionário presbiteriano escocês Robert Reid Kalley (1809-88) na Madeira. Após a sua chegada, em 1838, Kalley juntou a uma actividade filantrópica bem recebida uma discreta evangelização baseada na alfabetização e leitura da Bíblia que, à medida que foi sendo notada, suscitou crescente oposição entre as autoridades eclesiásticas; quando, em Maio de 1845, Kalley e as centenas de fiéis que reunira se constituíram em Igreja Presbiteriana Portuguesa, desencadeou-se uma dura repressão que terminou, em Agosto de 1846, na expulsão do País de todo este primeiro grupo de protestantes portugueses (Kalley e muitos deles seguiram para o Brasil, outros estabeleceram-se nos Estados Unidos da América). O acontecimento foi demonstrativo da incapacidade da sociedade portuguesa da época integrar a diferenciação religiosa e contribuiu para atrasar duas décadas a continuação da missionação protestante em solo nacional; esta teve de esperar pela estabilização do regime liberal a partir de 1851. A iniciativa pertenceu aos capelães anglicano e presbiteriano de Lisboa, Thomas Godfrey Pembroke Pope (1837-1902) e Robert Stewart (n. 1828) e, em Vila Nova de Gaia, ao industrial de origem inglesa Diogo Cassels (1844-1923); colaborando os três na distribuição regular de Bíblias em Portugal a partir de 1864 pela Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, juntaram em torno de si pequenos grupos de portugueses que se reuniam para ler e comentar as Escrituras. Destes três grupos nasceram, na segunda metade da década de 1860, as comunidades episcopaliana (em torno de Pope), presbiteriana (em torno de Stewart) e metodista (em torno de Cassels). Os primeiros a organizarem-se formalmente numa Igreja nacional foram, em 1880, os Episcopalianos, com a Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica (I.L.C.A.E.); os Presbiterianos e os Metodistas, com congregações organizadas no início da década de 1870, estiveram mais tempo subordinados às sociedades missionárias britânicas que apoiavam o seu desenvolvimento. A I.L.C.A.E. não esteve menos dependente da ajuda anglicana mas teve maiores meios de subsistência depois da adesão dos dois irmãos industriais Diogo e André Cassels (1880 e 1890), que subsidiaram a fundação e o desenvolvimento das congregações de Vila Nova de Gaia e do Porto; por outro lado, a adesão de alguns sacerdotes católicos romanos egressos contribuiu para o fortalecimento do seu corpo ministerial. Em 1884, a I.L.C.A.E. publicou a primeira edição do seu Livro de Oração Comum, que estabeleceu uma liturgia própria e lhe conferiu desde muito cedo uma sólida unidade doutrinal e histórica; porém, só em 1958 conseguiu a sagração de um bispo português, D. António Ferreira Fiandor (1884-1970) através do episcopado anglicano, vindo a suceder-lhe, em 1962, D. Luís César Rodrigues Pereira (1908-84) e, em 1980, D. Fernando da Luz Soares. Entre os Presbiterianos, em 1911, consumou-se a separação definitiva da capelania escocesa e foi obtido o reconhecimento legal da Igreja Presbiteriana de Lisboa (1913), ficando esta na dependência da Sociedade Brasileira de Evangelização (presbiteriana), que ajudará à expansão do Presbiterianismo; depois da Segunda Guerra Mundial, com a chegada do missionário norte-americano Michael P. Testa (1912-81) abriu-se caminho para a emancipação, constituindo-se formalmente, em 1947, a Igreja Evangélica Presbiteriana de Portugal (I.E.P.P.), que realiza o seu primeiro Sínodo em Outubro de 1952. Os Metodistas tiveram no missionário Robert Hawkey Moreton (1844-1917) o seu grande impulsionador e mantiveram-se dependentes da Conferência Metodista inglesa até à realização do seu primeiro Sínodo e constituição como Igreja Evangélica Metodista Portuguesa (I.E.M.P.), em 1948. No século XIX estabeleceram-se ainda as Igrejas dos Irmãos, os Congregacionalistas e os Baptistas; menos centralizadas e organizadas que os três grupos pioneiros, estas denominações apareceram com pregadores britânicos que começavam por frequentar as congregações já existentes. Assim, foi fundada a primeira Igreja de Irmãos em Lisboa em 1877 com Richard e Cathryn Holden (Amoreiras), tendo posteriormente os missionários Stewart Menair e George Owens prosseguido a evangelização nas áreas limítrofes de Coimbra e Aveiro; no início do século XX, outros missionários britânicos contribuíram para a fundação de mais congregações (Charles e Mary Swan e Robert McGregor) mas, a partir dos anos Vinte, surgiram também evangelizadores portugueses como Waldemar de Oliveira, José Ilídio Freire, Viriato Sobral e Luís Paiva (alguns dedicavam-se a uma pregação itinerante). Os Congregacionalistas abriram a sua primeira igreja em Lisboa em 1880 mas só dez anos depois, graças à ajuda da então formada Missão Evangelizadora do Brasil e Portugal (a partir da Igreja Fluminense, congregação mãe do Congregacionalismo brasileiro) tiveram possibilidades de estabelecer outras missões em Lisboa e no Ribatejo; em Ponte-de-Sôr, o missionário Pereira Cardoso fundou uma das principais igrejas desta denominação. Após 1945, a diminuição que se fora verificando da ajuda brasileira teve como consequência a fusão de algumas comunidades congregacionalistas com os Presbiterianos, integrando hoje a I.E.P.P., enquanto outras permaneceram independentes, contando com o apoio, entre outras, da Liga Congregacional de Inglaterra. Os Baptistas surgiram em Portugal com Joseph Charles Jones (1848-1928), inicialmente ligado à congregação de Diogo Cassels (Vila Nova de Gaia), da qual se separou para organizar a primeira congregação baptista (de comunhão aberta), que se transformou em 1908 na Igreja Baptista Portuguesa. Outras congregações baptistas foram fundadas pelos missionários Robert Reginald Young (1867-1923), Jerónimo Teixeira de Sousa (1868-1928) e Zacarias Clay Taylor (1851-1919), este último enviado pela Convenção Baptista Brasileira, que iniciou então a cooperação com os Baptistas portugueses (seguida da Junta Baptista do Texas). Dois portugueses, João Jorge de Oliveira (1883-1958) e António Maurício (1893-1980), destacaram-se como missionários na altura da fundação, em 1920, da Convenção Baptista Portuguesa (C.B.P.) por congregações do Porto, Leiria, Tondela e Viseu (J. C. Jones foi ainda o seu primeiro presidente); porém, a cooperação conjunta de Brasileiros e Norte-Americanos gerou algumas incompatibilidades que conduziram a cisões na C.B.P., dando origem à Aliança Baptista Portuguesa (1928-32) e à União Baptista Portuguesa (1946-56). A Junta Baptista do Texas foi substituída mais tarde pela Conservative Baptist Foreign Mission Society, que se ligou à C.B.P., e pela North American Baptist Association, em torno da qual se juntou a Associação de Igrejas Baptistas Portuguesas (A.I.B.P.) em 1955. Dois anos depois, também a Junta Missionária de Richmond da Convenção Baptista do Sul dos Estados Unidos da América passou a cooperar com a C.B.P., fornecendo recursos humanos e financeiros que criaram condições para um grande desenvolvimento da obra baptista nas décadas de cinquenta e sessenta. Os Adventistas do Sétimo Dia iniciaram a sua obra de evangelização em Portugal com o pastor Clarence Emerson Rentfro (1877-1951), que se instalou em Lisboa em 1904; Ernesto Schwantes, em 1906, foi o primeiro obreiro adventista no Porto. Entre 1917 e 1924, o suíço Paulo Meyer (1886-1944) dirigiu a missão portuguesa mas só em 1935 esta viu os seus estatutos oficialmente reconhecidos, já sob a presidência do pastor António Dias Gomes (1901-1994), que a ocupou até 1950; o período após 1945 assistiu a um grande crescimento da implantação Adventista (inclusivamente no ultramar), destacando-se como dirigente, missionário e autor nesta segunda metade do século o pastor Ernesto Ferreira (n. 1913). Fadado também a um grande crescimento, o Pentecostalismo teve em José Plácido da Costa (1870-1965) o seu iniciador em Portugal; ex-baptista que terá aderido às Assembleias de Deus pentecostais no Brasil, este pioneiro começou em 1913, na Póvoa de Varzim, o seu trabalho evangelizador. Em 1921, vindo do Brasil, José de Matos Caravela (1887-1958) implantou as Assembleias de Deus no Algarve e na zona de Santarém. Do Brasil, veio igualmente o sueco Daniel Berg (1894-1963), principal impulsionador do Pentecostalismo no norte do País; na área de Lisboa, a partir de 1934, outros suecos, Jack Hardstedt, Samuel Nystron e sobretudo Jarl Tage H. Stahlberg (1902-1980) conduziram o crescimento das Assembleias de Deus. Em 1939, realizou-se a primeira convenção nacional dos obreiros das Assembleias de Deus com vista a uma cooperação das várias congregações e ao aperfeiçoamento do trabalho missionário; além das Assembleias de Deus, a partir da década de sessenta, estabeleceram-se em Portugal outras denominações pentecostais, quer originadas de cisões nas primeiras, quer do esforço missionário de grupos brasileiros, porto-riquenhos, norte-americanos e britânicos, incluindo os chamados neopentecostais, grupos de raiz pentecostal mas muito marcados pela “teologia da prosperidade”. Com presença em Portugal desde 1925, as Testemunhas de Jeová vieram a tornar-se na denominação individualmente mais numerosa; publicaram desde a década de 20 abundante literatura (incluindo uma edição portuguesa da revista Torre de Vigia) mas viram as suas actividades cerceadas durante o Estado Novo. As várias tentativas de legalização que fizeram até 1974 fracassaram e foram vítimas da maior pressão feita pelo Estado sobre uma denominação protestante durante toda a época contemporânea; o grande crescimento do seu número de fiéis intensificou-se com a legalização e liberdade obtidas após 1974. Outra importante denominação cristã que se estabeleceu em Portugal foi a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a qual só se pôde implantar desde 1974.

[«Protestantismo» (vol. P-V-Apêndices pp. 75-85), Dicionário de história religiosa de Portugal (dir. Carlos Moreira Azevedo), Lisboa: Círculo de Leitores, 2000-2001.]

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Haydn Trumpet Concerto in Eb 1st Mov

Mozart e Beethoven são grandes compositores, mas sempre me pareceu que as suas obras são "apenas" adendas de excelente qualidade ao génio de Joseph Haydn. Aqui, Haydn dá um ar de sua graça, com a Orquestra de Câmara Inglesa e Wynton Marsalis no trompete a darem uma ajuda.

quinta-feira, agosto 23, 2007

Fiat lux

Afinal, depois disto, acho que já percebi: onde o Arroja vai passar a ficar bem é na Escola Histórica Alemã (a de economia). Isto sim, é uma "ruptura epistemológica" para um liberal!

A Marcha Radetzky Op. 228

Composta por Johann Strauss (pai) para festejar os triunfos do general-conde Radetzky em 1849, esta marcha é aqui interpretada pela Filarmónica de Viena (dirigida por Claudio Abbado) no Concerto de Ano Novo de 1991.

A marcha, como veremos, rompe com vários lugares comuns.

Antes de mais, esta marcha vence a snobeira de alguns apreciadores de “música clássica”, que não gostam das palmas e do entusiasmo habitual do público quando ouve esta composição; acham-na “parola”, digamos assim. Só que esse efeito, que perdurou muito para além dos acontecimentos que motivaram a marcha, é uma prova irrefutável do talento de Johann Strauss, que pretendia precisamente que ela arrebatasse e criasse uma onda de alegria popular que servisse de catarse aos acontecimentos de 1848-1849, que quase derrubaram o Império Austríaco.

O general-conde Radetzky foi o homem que, naquela conjuntura, conseguiu manter intacto o exército austríaco (e a sua “cadeia de comando” como se poderia dizer perante aquele “PREC” de 1848), bem como a sua lealdade ao imperador. Com isso, pôde pôr fim ao caos político que se apoderara de Viena, onde dominavam militantes “democratas” violentos irritados com os poucos votos conseguidos nas urnas e políticos fracos recentemente eleitos que se mostravam muitíssimo mais incompetentes que Metternich (a “velha raposa”, “liberal at heart”, que a rua amotinada exigira ao imperador que despedisse em 1848). Além de ter entregue de novo ao imperador o poder legítimo para as verdadeiras reformas poderem prosseguir, Radetzky conseguiu ainda vencer os focos periféricos de instabilidade: na batalha de Novara, bateu pelas armas os Piemonteses que se propunham “libertar” os súbditos italianos do imperador e mostrou os dentes aos “democratas” húngaros que regateavam a lealdade de Budapeste também mergulhada no seu “PREC”.

Strauss julgou haver motivo para comemorar. Os oficiais do exército austríaco, quando ouviram a composição, transbordaram de entusiasmo e seguiram o ritmo batendo palmas e com as botas no chão; os populares tiveram a mesma reacção. Afinal, podia-se começar de novo, mas com um pouco mais de ordem e alegria. E o que resultou, anos mais tarde, além de mais excelente música de Strauss, foi a monarquia dual, o progresso e as liberdades efectivas e toda a riqueza cultural de Viena, fecundada pela natureza cosmopolita e multinacional do império. Hoje, sabemos que foi um espírito destes que faltou ao império em 1918 e que o vazio por isso criado precipitou o coração da Europa, por muitas décadas, nos braços dos fantasmas do nacionalismo e do radicalismo “democrata”, espantados por Radetzky e por Strauss em 1849.

quarta-feira, agosto 22, 2007

Seixas - Concerto para Cravo e Orquestra

Para recuar em termos cronológicos em relação a Bomtempo e representar o melhor da música barroca portuguesa, nada melhor que o Concerto para Cravo e Orquestra (integral) do igualmente grande Carlos Seixas (1704-1742). No cravo, Natasha Pikoul.

Bomtempo - Sinfonia Nº 2 (Minueto-Allegro)

Finalmente Bomtempo no Youtube! Não são ainda as sonatas para piano, mas, para já, o Minueto-Allegro (3.º andamento) da fantástica Sinfonia n.º 2. De entre as gravações disponíveis, esta é a melhor (Orquestra Sinfónica de Bamberg, dirigida por Claudio Scimone). João Domingos Bomtempo (1775-1842) é, simplesmente (sobretudo pelas referidas sonatas), o meu compositor preferido.

Kaiser-Walzer op. 437

A obra do vienense Johann Strauss (filho) dedicada ao imperador e rei Franz Josef I na ocasião da sua visita a Berlim em 1889, onde foi estreada. Por cortesia para com o público alemão, a valsa pôde ser entendida como homenagem conjunta ao imperador Wilhelm II, entronizado no ano anterior. Mas a quem o compositor a dedicara realmente restam poucas dúvidas. Formalmente aliados sobretudo pela comum oposição ao gigante russo, Alemães e Austríacos (exceptuando os extremistas pangermanistas) não morriam de amores uns pelos outros. Digamos que a composição de Strauss era um género "Methodenstreit" por meios musicais...

segunda-feira, agosto 20, 2007

O Estado Imperial e Real Austro-Húngaro em 1911


A designação oficial do vulgarmente chamado Império Austro-Húngaro (desde 1867) era: "Os Reinos e Territórios Representados no Conselho Imperial [Austríaco] e os Territórios da Sacra Coroa Húngara de Santo Estêvão". Em baixo, as armas da monarquia dual adoptadas em 1915.

sexta-feira, agosto 17, 2007

Bernanke ou o monetarismo contra o mercado

Ele já tinha avisado que o ia fazer e agora, na primeira oportunidade (e depois do primeiro exercício também inflacionista), confirmou amplamente as promessas, como refere Miguel Noronha. A tentação será grande para o BCE parar, como já tanta gente reclama, a correcção da tendência de "crédito fácil" na Zona Euro. Estes rapazes de Chicago (e os "estabilizadores de preços" em geral), que se crêem grandes defensores do mercado, podem fazer muitos estragos por continuarem a ignorar a teoria monetária (e do ciclo económico) "austríaca".

DC Talk (VI)

"BETWEEN YOU AND ME". (Álbum "Jesus Freak".)

DC Talk (V)

"WHAT IF I STUMBLE". Sempre o mesmo álbum. "This one for the people, this one for the Lord".

DC Talk (IV)

Do mesmo álbum, "DAY BY DAY", uma das mais "devocionais" e das minhas preferidas.

DC Talk (III)

"SO HELP ME GOD". Também do álbum "Jesus Freak" (aqui ao vivo), chegar a Deus com muito, muito barulho.

DC Talk (II)

"IN THE LIGHT". Encontra-se tudo no YouTube. Outra canção do álbum "Jesus Freak". Há bandas que lêem Paulo em palco e há as outras... A letra desta canção deve ser bem interpretada: sob Cristo, o egoísmo (pulsão da vontade), distinto do individualismo (estado moral), não se opõe ao altruísmo; opõe-se, sim, à aliança do indivíduo com Deus. É aqui que cristãos e randianos divergem...

DC Talk (I)

"JESUS FREAK". Descobri estes senhores há uma dúzia de anos no meio do meu "revival" individual (que canções como esta contribuíram para "atear"). Mas a música foi só um complemento de uma pulsão toda escriturística, para a qual "Hebreus" foi tudo e os DC Talk apenas os "despojos do dia").

quinta-feira, agosto 16, 2007

O individualismo segundo Ayn Rand (II)

Ayn Rand no seu melhor, numa entrevista de 1959 com Mike Wallace (que reproduz toda a mundividência colectivista, mesmo em termos históricos, já dominante também na América dos anos 50). A ideia do intrevistador de que somos "our brother's keepers" (portanto, todos "protegem" e são "protegidos") - aliás desfeita aqui pela ateia Ayn Rand - tem menos a ver com a tradição bíblica judaico-cristã do que com as tradições religiosas e ideologias seculares que a parasitaram ao longo do tempo.

O individualismo segundo Ayn Rand (I)

Howard Roark (interpretado por Gary Cooper) na adaptação cinematográfica (1949) da obra de Ayn Rand, "The Fountainhead". O discurso de Roark, um manifesto individualista, é célebre e, excepto a porta aberta para a propriedade intelectual na argumentação, concordo com tudo (a defesa de Roark é válida pelos seus direitos contratuais, não por ser dono, como diz, das "suas ideias"). A representação, convenhamos, é fraca...

4 anos ecléticos


Parabéns ao Eclético pelo seu 4.º aniversário. A Maggie é uma veterana da blogosfera, mas com o elixir da juventude (e da independência). Beijos e abraços!

quarta-feira, agosto 15, 2007

Os que querem instrumentalizar Deus

Sobre os últimos escritos de Pedro Arroja (no Portugal Contemporâneo e nomeadamente aqui), transcrevo o comentário de um anónimo que diz exactamente aquilo que penso sobre as infelizes afirmações de alguém que já admirei muito (consultável no haloscan):

"Depois de ver o título do post e a imagem de Hume, pensei que o Arroja tinha escrito alguma coisa acerca do irracionalismo humeano. Puro engano... Hume serviu apenas de pretexto para o Arroja voltar a bater no Descartes. E para voltar a culpar Descartes pela racionalização de Deus, quando – e já me fartei de dizer isto – esta prática não foi iniciada por ele, mas sim pelos filósofos medievais que aristotelizaram e platonizaram o cristianismo. No que à demonstração da existência de Deus diz respeito, Descartes não abriu nenhuma avenida; seguiu foi o caminho trilhado pelos Anselmos, Aquinos e Agostinhos. Hume, sim, é que seguiu outra via, possibilitando a dita revolução copernicana de Kant. Percebe-se, por isso, a pouca vontade do Arroja em falar de Hume, não vá abrir-se uma caixa de Pandora.Agora, estranho (ou não) é o Arroja sentir-se feliz com o falhanço cartesiano, ao mesmo tempo que se sente feliz com a conversão bem sucedida de Flew ao argumento do desígnio. E estranha (ou não) é, também, a sua felicidade por a ideia de Deus não ter sido banalizada ou aprisionada pela razão, quando o próprio Arroja evoca o nome de Deus em vão, isto é, instrumentaliza-o e aprisiona-o numa função que seria a de garantir a viabilidade da sociedade. Se, para Descartes, Deus é a causa primeira do mundo, para o Arroja importante é ele ser a causa primeira da sobrevivência de uma sociedade.E assim, não é preciso imaginar o que seria o terrível mundo de hoje se Descartes tivesse demonstrado a existência de Deus. O mundo de hoje é feito de Arrojas que tratam Deus, não por tu, mas como uma coisa, como um instrumento para controlar as massas. Convém, por isso, Deus não ser banalizado e aprisionado por uma razão critica, mas sê-lo, antes, pela supertição e pela idolatria a que os crentes mais facilmente aderem. Ou não fosse o cristianismo o platonismo do povo, como disse Nietzsche. O mundo de hoje é, portanto, guiado pelo pragmatismo e pelo utilitarismo, e isto está bem patente nas ideias do Arroja acerca da religião. É o mundo em que Deus não está presente como princípio, mas sim como meio. A sociedade viável do Arroja é, afinal, a sociedade em que Deus está morto."

P.S. Na verdade, Arroja falou depois de Hume, mas só para fazer mais afirmações infelizes - ad hominem e sobre o que Hume sustentou sobre a causalidade. Valha-nos Deus!

A diferenciação religiosa e o seu lugar na historiografia

[Comunicação apresentada nas Jornadas de Estudo "Da História Eclesiástica à História Religiosa – No 50.º Aniversário da Revista Lusitania Sacra”, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 24 e 25 de Novembro de 2006, publicada em Lusitania Sacra, 2.ª série, tomo XXI, 2009, pp. 295-309.]

À Paula, companheira também nas conversas em que estas ideias se fizeram.

[1. Convém saber o que é um Snark se o queremos caçar...]

O filósofo e teólogo norte-americano Gordon H. Clark explicou uma vez, com o seguinte exemplo, a necessidade de definirmos as coisas que procuramos: se Lewis Carroll dissesse a Alice para investigar todos os Snarks existentes e encontrar depois a natureza comum do Snark, Alice (pelo menos nos seus momentos despertos) não saberia se todos os objectos ou qualquer um dos objectos que lhe aparecessem seriam Snarks [Religion, Reason, and Revelation, 1.ª ed. 1961, Hobbs, New Mexico: Trinity Foundation, 1995, p. 20]. Nesta comunicação, parto da constatação que o investigador de história religiosa está na mesma situação de Alice: ele parte à procura do seu objecto de estudo sem o definir previamente. E, por isso, a história religiosa tem estado na situação de se limitar a estudar aquilo que o senso comum estabeleceu ser o domínio do religioso ou aquilo que se tem vindo a convencionar como tal, de forma sempre arbitrária, na informal divisão do trabalho entre historiadores. Aqui defenderei que o fenómeno da diferenciação religiosa coloca à nossa área de estudos questões que exigem uma acrescida atenção aos pressupostos conceptuais dos quais partimos habitualmente. Como tentarei ainda explicar, o que está em causa é uma reflexão sobre o âmbito do religioso na sociedade, o que, em último caso, nos obriga a questionar o próprio lugar da história religiosa nos tipos correntes de discurso historiográfico. Finalmente, explicitarei aquilo que julgo serem as potencialidades da história religiosa como área de estudo se for assumido o risco de uma definição abrangente do seu objecto de estudo.

[2. Ainda e sempre filhos da «primavera das nações» na historiografia]

A história religiosa tem estado submetida a um paradigma historiográfico, que é o da história do Estado-nação. Dentro desse paradigma, ela tem sido tratada como uma secção, ou subsecção, do discurso historiográfico, versando sobre uma parte da realidade (ou, na verdade, uma pequena parte da realidade, se sairmos do período medieval). No paradigma da história nacional, ou do Estado-nação, o factor político (ou, mais propriamente, os actos do governo ou o jogo de pressões que pretendem influenciá-los) é o aglutinador do discurso historiográfico, é o cimento que permite ao discurso encontrar um fio condutor, sendo os demais aspectos subsidiários e podendo ser retirados ou acrescentados conforme as conveniências narrativas do historiador. William H. McNeill, além desta natureza da história nacional, lembra ainda que são as sínteses em torno da cultura das elites que têm servido de elemento aglutinador das histórias da civilização ocidental (ou da Europa) e considera que só o elemento ecológico poderá ser a base das actuais tentativas de síntese de história global [An emerging consensus about world history?]. Mas, em qualquer destas escalas, a síntese que nos permite escrever implica sempre seleccionar uma pequena parte da informação histórica disponível e excluir do discurso historiográfico a grande maioria. Por essa razão, à escala da história nacional, temos muitas Histórias de Portugal que passam bem sem capítulos dedicados à história religiosa e que apenas se referem a ela (ou a dados a ela ligados) quando, por alguma razão, isso se torna imprescindível para esclarecer algum aspecto de uma política do Estado ou do programa de um partido político relevante.

Num país como Portugal, marcado no campo religioso por uma hegemonia confessional, o trabalho dos historiadores relativamente à realidade religiosa parece facilitado: relatando o fluir dos séculos, o discurso historiográfico pode ter pouco a dizer: a religião é a Igreja Católica Romana, a sua rede paroquial, as suas ordens regulares e outras instituições, enquadrando as crenças da generalidade da população. O factor de mudança é o político e mesmo a mudança no universo religioso é geralmente considerada sob a influência do político (o impacto de Pombal, o impacto do vintismo, o impacto da república, etc.). A história religiosa, entendida como essencialmente a história de uma rede institucional, pode ser facilmente circunscrita à história eclesiástica, pelo que depois de uma obra como a de Fortunato de Almeida [História da Igreja em Portugal, Porto: 1.ª ed. 1910-1924], pode parecer existir pouco a fazer, a não ser actualizá-la. Mesmo os movimentos laicais católicos, na época contemporânea, não parecem fugir a uma lógica de integração institucional, não perturbando esse arranjo historiográfico.

[3. O que muda quando queremos estudar a emergência da diferença]

Ora, como eu me apercebi ao redigir a parte da História Religiosa de Portugal relativa à pluralidade na época contemporânea [«A pluralidade religiosa: correntes cristãs e não cristãs no universo religioso português» in Carlos Moreira Azevedo (dir.), Idem, vol. 3, pp. 399-501, Lisboa: Círculo de Leitores, 2002], o estudo de fenómenos de diferenciação profunda rompe com esta lógica institucional e dificilmente se acomoda a escrever notas de pé de página para ir referindo, numa narrativa feita a partir do político (ou de “novas condições políticas”), o aparecimento de sebastianistas, judeus, maçons, protestantes históricos, espíritas, teósofos, testemunhas de Jeová ou neopentecostais. A manifestação de uma diferença religiosa que recusa ou não cabe no enquadramento institucional da Igreja estabelecida torna premente a explicação das motivações. E tentar explicar essas motivações dos agentes históricos implica compreender as expectativas e as crenças em presença que desencadearam determinados comportamentos; isto exige uma deslocação, em termos de objecto, das instituições para as pessoas. Ora, não estando nós, o mais das vezes, a fazer biografias, a descida a este nível pode parecer uma missão impossível. O que o historiador terá de fazer, obviamente, é explicar tipos de comportamento que cubram as principais manifestações de diferenciação que encontrou. Mas as dificuldades não se ficam por aí.

Uma coisa é estudar a manifestação da diferença, outra é saber se essa diferença que se manifesta está no âmbito do religioso. Quando um agente histórico já crente católico numa sociedade católica adere ao movimento da Jacobeia, contribuindo para a manifestação social de uma forma diferenciada de vivência religiosa, nós podemos estudar as motivações, as expectativas e as crenças que o levaram por esse caminho, creio que sem nos questionarmos que nos mantemos dentro do objecto de estudo da história religiosa. Com a mesma certeza permanecemos se decidirmos estudar a Jacobeia e a importante diferenciação que introduziu no campo religioso português na sua época. Mas consideremos agora o caso de alguém que representa outro tipo de comportamento, alguém que partiu em termos culturais e religiosos do catolicismo romano e, a determinada altura, o repudia explicitamente a favor da adesão ao positivismo de Comte e de Littré. O historiador da religião será até capaz de estudar esse abandono da crença religiosa tradicional e, no quadro da história religiosa, tentar compreender esse fenómeno. Mas seria ainda da alçada da história religiosa estudar o positivismo como movimento de ideias? Isto é, se alguém abandona uma crença religiosa como tal conhecida porque aderiu a um determinado corpo de ideias, pelos vistos incompatível com aquela crença, isto não deve fazer soar as campainhas de alerta do historiador da religião? Esse corpo de ideias, apesar de não se apresentar no seu próprio discurso como religioso, não desempenhará realmente funções religiosas? Aqui chegados, das duas uma: ou renunciamos ao estudo do positivismo na nossa área de estudos, fazendo desaparecer o problema, ou aceitamos o desafio e nos confrontamos com a espinhosa tarefa de termos de definir o âmbito do religioso na sociedade.

[4. De como definir «religião» exige uma perspectiva antropológica]

Ora, para definirmos o âmbito do religioso na sociedade, temos de definir o âmbito do religioso no ser humano. E isto coloca ao historiador um sério problema antropológico que é bem capaz de o fazer voltar para os confortáveis braços da história institucional. É que qualquer tentativa de definir o fenómeno religioso torna evidente o simplismo das arrumações do discurso historiográfico a que a história religiosa tem estado sujeita [para um conjunto interessante de definições propostas por variadíssimos pensadores, ver http://www.religioustolerance.org/ rel_defn.htm]. Já a definição de William James, que apresentava a religião como «a crença numa ordem invisível, sendo o nosso bem supremo ajustarmo-nos harmoniosamente a ela», permitia estudar de uma perspectiva religiosa a manifestação social e histórica das grandes correntes políticas da modernidade (e não só as da antiguidade e medievalidade, como em geral acontece). Da perspectiva dessa manifestação, as doutrinas científicas também caberiam na definição avançada pelo antropólogo Clifford Geertz: «A religião é um sistema de símbolos que cria no homem disposições e motivações fortes e permanentes que podem chegar a formular concepções de uma ordem geral da existência, cobrindo-as com uma tal aura de factualidade que aquelas disposições e motivações parecem absolutamente realistas». Certamente que a relação de muita gente com a ciência e a política pode ser abrangida pela noção do publicista H. L. Mencken, segundo a qual a função da religião é «dar ao homem acesso às forças que parecem controlar o seu destino, sendo o seu único propósito o de tornar essas forças amigáveis».

O filósofo Keith Yandell propõe a seguinte definição: «uma religião é um sistema conceptual que contém uma interpretação do mundo e do lugar que nele ocupam os seres humanos e que baseia nessa interpretação a sua explicação para a maneira como a vida deve ser vivida, expressando essa interpretação e estilo de vida num conjunto de rituais, instituições e práticas» [Philosophy of Religion: A Contemporary Introduction, Londres: Routledge, 1999, pp. 16-17]. Esta definição parece-me poder incluir a generalidade das doutrinas políticas, quando metamorfoseadas em ideologias mais ou menos mobilizadoras ou quando sedimentadas num aparato institucional como o Estado, e inclui virtualmente determinadas manifestações de pensamento “cientista” quando este dá o salto de querer prescrever “a maneira como a vida deve ser vivida” (parece-me ser este o caso da evolução, nos últimos anos, do biólogo darwinista Richard Dawkins, uma das personalidades ligadas ao movimento dos chamados Neo-Ateus).

Ao historiador não interessa tanto se, por exemplo, o positivismo ou o socialismo são, enquanto teorias ou doutrinas, fenómenos religiosos ou “religiões”; o que lhe interessa é o processo através do qual essas teorias ou doutrinas se tornaram socialmente significativas, isto é, como e quando influenciaram a percepção da realidade e as escolhas de um número significativo de indivíduos. A eventual motivação ou origem religiosa dessas teorias e doutrinas será polémica (embora eu a defenda, no quadro do gnosticismo moderno identificado por Eric Voegelin), mas a sua transformação em fenómenos socialmente significativos, gerando sociabilidades e afirmações de diferença em relação a crenças e sistemas de crença estabelecidos, é já algo que me parece difícil de separar do âmbito da religião e da história religiosa. A minha deslocação do objecto da história religiosa, das instituições para as pessoas (enquanto agentes históricos), implica valorizar a crença e definir a religião como “aquilo que produz (e reproduz) crença”. Ora, não há “sistema conceptual” na acepção de Yandell que seja socialmente significativo sem o fenómeno da crença. No âmbito da pura actividade intelectual dos indivíduos, esses conceitos (ou símbolos) serão outra coisa, mas, ao motivarem sociabilidade e ao influenciarem escolhas no quotidiano (na “história vivida”), ganham todas as características das crenças. Utilizo aqui o termo crença com o significado que lhe atribui David Hume em Investigação Sobre o Entendimento Humano (§§39-45): como algo distinto «da ficção ou dos devaneios soltos da fantasia», como «uma concepção mais viva, mais forte, mais firme e mais estável de um objecto do que se pode obter pela simples imaginação», produzida pelos princípios da associação, por uma «espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e as nossas ideias», como uma «operação das nossas mentes necessária para a nossa subsistência e, portanto, confiada ao instinto e não ao raciocínio».

[5. A dinâmica da crença (amplamente considerada), fulcro do fenómeno religioso]

Só tornando-se socialmente significativo pode um “sistema conceptual” (eu talvez dissesse “sistema simbólico”) tornar-se um objecto de estudo para o historiador. Nestes termos, a minha definição do religioso seria aquilo que produz crenças nos indivíduos ao ponto daquelas se tornarem socialmente significativas, isto é, de influenciarem a percepção da realidade e as escolhas de um número significativo de indivíduos. A ritualização e a institucionalização serão tendências decorrentes da acção social dessas crenças – decorrentes, pois, de elas produzirem sociabilidade – e, de facto, um indicador importante de estarmos na presença de um fenómeno religioso como o define Yandell. Mas, do meu ponto de vista, a ritualização e a institucionalização são posteriores – ainda que imediatamente posteriores – ao fenómeno religioso propriamente dito, como pode tornar evidente a sua manifestação em sociabilidades em rede, as quais, dada a sua característica algo “desmaterializada”, pode ainda não ter sedimentado o rito e a instituição.

Seremos ajudados a compreender o fenómeno da crença se a percebermos como algo que o indivíduo raramente vive como realidade total ou exclusiva. A vivência histórica das religiões monoteístas, que de certa forma pedem essa exclusividade ou totalidade, mostra-nos que os indivíduos fazem uma gestão diversificada de crenças, harmonizando-as e hierarquizando-as, tornando generalizado no espaço e no tempo o fenómeno do sincretismo informal e prático: posso ser católico e positivista, católico e socialista (ou liberal), católico e cultor do esoterismo, do espiritismo ou da astrologia – ou conjugar todas estas coisas. Este facto é importante quando estudamos o fenómeno da diferenciação no campo religioso. É difícil encontrar alguém que fosse retintamente azul e se torne retintamente vermelho. O que ocorre frequentemente, mesmo nos fenómenos de “conversão”, é que o indivíduo altera a sua hierarquização de crenças. Isto não quer dizer que não possa repudiar crenças anteriores e que o processo não possa ser mais radical, sobretudo se tentar aderir à exclusividade que algumas crenças reclamam. Mas muitas crenças são vividas como meras compensações que suprem as insuficiências sentidas num sistema de crença a que se adere por tradição (e que, também no ser do indivíduo, pode ser uma “estrutura hegemónica”); são, digamos assim, um fenómeno de relativa diversificação do investimento que o indivíduo faz no complexo de crenças que orienta a sua vida. Estudar a diferenciação religiosa que assim se manifesta de modo muito parcial e relativo é um desafio difícil e é mais uma das razões que nos levam a preferir a história das instituições – que são geralmente guardiãs das crenças em estado puro. Exemplificando: é diferente e mais fácil estudar a instituição Sociedade Teosófica (a sua formação e desenvolvimento) do que a influência das suas ideias nas concepções religiosas de muita gente que não é membro daquela sociedade. O mesmo poderia ser dito do estudo do catolicismo enquanto religião institucionalizada em relação ao estudo das pessoas que, por razões culturais, interiorizaram aspectos da doutrina católica e não se sentem nem se apresentam como crentes no catolicismo (embora o sejam em parte). Neste sentido, também é verdade aquilo que J. M. Keynes disse numa ocasião sobre as ideias dos economistas: que influenciam o modo de pensar de muita gente que nunca sequer ouviu falar nos seus nomes; mas é indiscutivelmente mais fácil definir o próprio keynesianismo académico do que a sua influência social em forma de crença informal, parcial ou compensatória.

[6. O «complexo individual de crenças», uma operacionalização do individualismo metodológico no estudo da religião]

O desafio, pois, é estudar não só os sistemas conceptuais (ou simbólicos) que são as religiões na definição de Yandell, mas também os complexos de crenças que os indivíduos constroem nas suas vidas e que explicarão eventualmente as suas escolhas e as suas sociabilidades [O “complexo individual de crenças” e a adição de novos elementos, bem como a gestão mais ou menos consciente que o indivíduo faz desse todo em composição, não é muito diferente (na verdade, participa) do processo de «contínua assimilação da realidade à inteligência», num «equilíbrio instável», mas de harmonização gradual por meio dos mecanismos de classificação e seriação da mente de que fala Jean Piaget (The Psychology of Intelligence, 1.ª ed. 1947, Londres e Nova Iorque: Routledge, 2001, cap. 2, secção «The Functional Meaning and Structure of “Groupings”», sobretudo p. 43). Sobre este assunto ver também F. A. Hayek, The Sensory Order: An Inquiry into the Foundations of Theoretical Psychology, Chicago: The University of Chicago Press, 1952, sobretudo cap. V]. Porque é nesses complexos de crenças dos indivíduos que as crenças formais (os sistemas conceptuais ou simbólicos) penetram, vivem e se transformam. Como disse atrás, o historiador, não podendo fazer milhões de biografias, terá neste caso de definir tipos de “complexos individuais de crenças”, neles situando as crenças formais mais relevantes e visíveis num dado campo histórico. Isto deverá ser feito sem se esquecer que mesmo os projectos religiosos totais (como os modelos antropológicos do islamismo wahhabita, do catolicismo integral ou do homem novo socialista, por exemplo) apenas conseguiram penetrar nesses complexos individuais e hegemonizar alguns, não anulando a propensão humana para a complexidade, a sobreposição e, muitas vezes, a contradição.

A tendência dos indivíduos para construírem e gerirem com criatividade estes “complexos individuais de crenças” esteve sempre limitado pela regulação dos grupos em que se inseriam, da família ao Estado – ou, visto de outro modo, pelo controlo que os indivíduos exercem habitualmente uns sobre os outros. Daí que a definição do ponto de equilíbrio, em cada campo histórico, entre a liberdade dos indivíduos e a regulação colectiva seja fundamental para se perceber as características do universo religioso. A liberdade de autodeterminação e associação religiosas dos indivíduos torna-se, assim, uma grelha de análise fundamental para se apurar o grau de liberdade que as sociedades históricas deram ou dão aos indivíduos de fazerem essa gestão do seu “complexo individual de crenças” (ou, dizendo de um modo mais preciso, o grau de liberdade que nos temos dado uns aos outros de gerir esse complexo ao longo do tempo histórico). [Sobre o individualismo metodológico nesta questão, ver também aqui, sobretudo ponto 5.]

[7. O outro eixo: a regulação colectiva dos «complexos individuais de crenças»]

Essa regulação social e/ou política do fenómeno religioso existe em todas as sociedades, embora o grau de “aperto” da regulação varie. É questionável que qualquer sociedade possa ter um contorno político (e, portanto, um “espaço público”, uma res publica, sujeita a decisões colectivas – ou ter Estado, diriam alguns) sem um grau mínimo dessa regulação das crenças. Essa configuração política das sociedades também requer adesão (nem que seja passiva) e, por essa razão, também gera (e gere) uma interpretação simbólica das suas funções. Onde isto nos leva, parece-me evidente: o Estado também é analisável como fenómeno ou realidade religiosa. Uma realidade que interfere na vida das pessoas, que a quer organizar e que pode colidir com crenças socialmente significativas (ou estas colidirem com ela).

No âmbito da história nacional (ou do Estado-nação), que é o paradigma historiográfico em que nos movemos, essa atenção à regulação social e/ou política do fenómeno religioso tem andado atrelada a termos que desconfio veiculam mais valências simbólicas do que conceptuais para a análise do campo religioso. Refiro-me aos termos secularização, secularidade, laicização e laicidade, que têm tendido a enquadrar as nossas concepções sobre a presença do fenómeno religioso; aplicados sobretudo aos períodos moderno e contemporâneo, condicionam, por efeito de retrovisor, a nossa visão das épocas históricas anteriores. Estes termos têm, na minha opinião, uma carga ideológica – ou talvez mitológica – muito forte e convidam o nosso discurso sobre a realidade a render-se a uma imagem de evolução linear e quase necessária que, para mais, tende a ser (e indevidamente) estendida à sociedade como um todo.

[8. De como «secularização» e «laicidade» têm valências conceptuais duvidosas]

Os termos secularização e secularidade poderiam ser definidos, respectivamente, como processo e estado de uma sociedade na qual se está reduzindo ou reduziu a capacidade ordenadora da realidade por uma religião assente num ideal ou entidade transcendente. Parece-me, apesar de tudo, uma possibilidade de análise funcional, mas fica-me a dúvida se a sua sobrevalorização não conduz à assunção, por um lado, de um determinismo histórico mal disfarçado no parti pris ideológico do historiador de ser essa uma evolução salutar e, por outro lado, se o pressuposto abandono de uma referência religiosa transcendente e ordenadora da realidade social não nos torna cegos para o problema colocado pelas sociedades que experimentaram uma arregimentação muito mais intensa sob a égide de ideologias que imanentizaram radicalmente o seu ideal ordenador (refiro-me sobretudo às experiências totalitárias do século XX). Essas experiências incluem, por exemplo, o Juche, a actual doutrina oficial e secular do Estado norte-coreano, que tem sido considerada uma religião [ver www.adherents.com/ largecom/Juche.html]. Quer dizer, o que pretendemos exprimir quando constatamos que uma sociedade se secularizou? Como as experiências totalitárias do século XX demonstram, isso não quer necessariamente dizer que tenham iniciado um caminho tendente à pluralidade ou à autodeterminação religiosa dos indivíduos. Pelo que o centrarmo-nos na perda de importância de um único referente transcendente na sociedade, expresso nos termos de secularização e secularidade, me parece ocultar excessivamente, para a problemática da diferenciação, a questão verdadeiramente relevante das possibilidades de autodeterminação e associação religiosa dos indivíduos.

Relativamente aos termos laicização e laicidade, julgo que têm o inconveniente de serem originários da formulação ideológica e simbólica da luta política historicamente recente, pelo que sempre vi com reservas o esforço de os tornar conceitos operativos para o estudo da realidade pelas ciências sociais; mas, independentemente desta consideração, a etimologia da palavra sugere um significado ainda mais limitado que o de secularização, dado exprimir um género de processo de empowerment dos leigos ou dos laicos, que significaria essencialmente um recuo do poder clerical – mas que poderia, em teoria, digo eu, dar-se no quadro de uma sociedade confessional; neste sentido, poder-se-ia afirmar que a Reforma protestante fôra um processo laicizador em sociedades que ainda não se colocavam o problema da secularidade; ora, isto é tanto mais estranho quanto estamos habituados a ler que o processo de secularização antecede a laicidade! De acordo com o American Heritage Dictionary, secularizar (secularize) é «To transfer from ecclesiastical or religious to civil or lay use or ownership», «To draw away from religious orientation; make worldly» ou «To lift the monastic restrictions from (a member of the clergy)»; já laicizar (laicize) é «To free from ecclesiastical control; give over to laypeople» ou «To change to lay status; secularize». Ou seja, os termos são praticamente considerados sinónimos, no sentido do que aqui defino como laicização no sentido etimológico e a questão do referente transcendente não é considerado. Este significado mais básico dos termos laicização e laicidade trai, obviamente, a sua origem histórica nas lutas políticas da França contemporânea quando centradas no estatuto político da Igreja Católica Romana e no papel de controlo social da sua hierarquia clerical.

Os termos laicização e laicidade ganharam, no entanto, um significado mais abrangente que o etimológico, assumindo eles próprios (de modo nem sempre declarado) um referente a um estado óptimo de relações entre crenças e descrenças individuais enquadradas numa determinada ordem política secularizada. Ora, o problema que aqui se coloca é que essa ordem política é antes de tudo um ideal ordenador da realidade (o Estado laico ou a laicidade) que pretende assumir uma valência conceptual para o estudo dessa mesma realidade; e isso, sinceramente, eu julgo muito perigoso para o rigor do nosso trabalho. Sem nos darmos conta, podemos estar a fazer mitistória em vez de história, assumindo a laicidade como o ponto terminal a partir do qual todo o passado deve ser interpretado – um pouco como na história sagrada todos os sucessos humanos são lidos à luz da certeza da Salvação prometida e antecipada nas Escrituras. Essa confusão parece-me tanto mais questionável quanto a laicidade, enquanto ideal ordenador da realidade, tem pressuposto, de formas diferentes em diferentes paragens, uma opção por uma secularização politicamente patrocinada e patente, nomeadamente, na monopolização ou forte condicionamento do ensino pelo Estado enquanto mecanismo de criação, reprodução e controlo social. O que quero dizer é que a laicidade não é, na própria realidade histórica que estudamos, um ideal neutro cuja suposta valência conceptual não levante mais problemas do que aqueles que resolve; não seria correcto, por exemplo, considerá-la sinónimo de completa ausência de barreiras à autodeterminação e associação religiosa dos indivíduos e até há quem a considere, persuasivamente, uma forma de religião civil dos Estados. Pierre Nora, citado por Danièle Hervieu-Léger [O Peregrino e o Convertido: A Religião em Movimento, Lisboa: Gradiva, 2005, p. 213], diz ser a laicidade francesa um «contra-modelo de uma “verdadeira religião civil” que comporta […] o seu Panteão, o seu martirológio, a sua liturgia, os seus mitos, os seus ritos, os seus altares e os seus templos». Segundo esta autora, que considera a laicidade «um sistema de regulação institucional do religioso», para reconhecer expressões religiosas, o Estado laico exigiu-lhes a sua institucionalização e a imposição interna de «um regime de validação do crer», pelo que este modelo comporta mal um campo religioso “desorganizado” do ponto de vista da lógica administrativa das autoridades estatais [Ibid., p. 214].

Na minha colaboração na História Religiosa de Portugal [vol. 3, p. 406], propus para os termos secularização e laicização definições ligeiramente diferentes das correntes ou geralmente pressupostas na historiografia [por exemplo, em A. M. Ferreira, s.v. «Laicização» e «Secularização», Dicionário de História Religiosa de Portugal, Lisboa: Círculo de Leitores, 2000 e 2001]. Interessava-me aí sobretudo captar o que me parecia essencial nas transformações do campo religioso português no século XIX e no desiderato “laicizador” do movimento político republicano. Nas definições que avancei, era já a possibilidade de autodeterminação e associação religiosa dos indivíduos que me parecia ser a grelha de análise fundamental para o estudo da diferenciação, pelo que não só desvalorizei a habitual centralidade dada à consagração jurídica da laicidade em 1911, como me pareceu poder constatar que ela não introduzira alterações relevantes para o estudo da referida possibilidade de autodeterminação e associação dos indivíduos. Nesse sentido, chamei atenção para a prática de “regulação administrativa” do religioso que sob a monarquia constitucional se aplicava essencialmente à Igreja Católica e aos seus movimentos mal enquadrados no estatuto constitucional do catolicismo e que se terá tornado até mais clara com o regime de separação de 1911 – que subtraiu a regulação das minorias aos tribunais e as colocou sob a mesma regulação reservada à Igreja maioritária. A minha interpretação é que isto esteve longe de ser o que hoje se denominaria um regime de “liberdade religiosa” [cf. também L. A. Santos, «O protestantismo em Portugal (séculos XIX-XX): linhas de força da sua história e historiografia», Lusitania Sacra, 2.ª série, n.º 12, p. 46 nota 12].

[9. A «separação» também não é um conceito historiográfico]

A separação entre o Estado e a religião (ou uma religião em particular) é um tema que está ligado a este que temos estado a examinar e sobre o qual eu aproveito para dizer que me parece ser também um elemento distractor. Para evitar os exemplos habituais (por exemplo, o inglês), sirvo-me da Constituição tailandesa de 1997, que estabelece que o Rei é budista [capítulo 1, secção 9, que diz também ser o monarca «protector das religiões»] e que todos os cidadãos têm «total liberdade de professar uma religião, uma seita religiosa, um credo, e observar preceitos religiosos ou exercer uma forma de culto de acordo com a sua crença» [capítulo 3, secção 38]; sendo certo que a confessionalidade da chefia do Estado não está de acordo com o que normalmente se subentende na noção corrente de “separação” e que a monarquia desempenha uma função simbólica importante naquele ordenamento constitucional, parece claro também que a liberdade de autodeterminação e associação religiosas dos cidadãos é consagrada. O que pode fazer neste contexto a laicidade, no seu significado corrente de neutralidade religiosa de um Estado secular, pelo esclarecimento conceptual da situação religiosa na Tailândia (ou da natureza do seu Estado) é, para mim, muito pouco claro. Quanto à secularidade, teríamos talvez de dizer que, sob a Constituição de 1997, a Tailândia é uma sociedade secular com um Estado não secular?

Importaria que o próprio Estado, na Tailândia ou em qualquer parte do mundo, fosse considerado pelos historiadores como algo que está dentro da realidade e sujeito à mediação simbólica com que a apreendemos. Aliás, como construção humana, ele sempre veiculou de si mesmo um significado simbólico, uma auto-representação. Neste sentido, pode dizer-se que tão “religioso” era o Estado turco sob o sultanato otomano quanto sob o laicismo republicano de Kemal Ataturk. Coisas diferentes serão avaliar as qualidades religiosas de cada uma dessas situações históricas e, nelas, a possibilidade de autodeterminação e associação religiosas dos indivíduos. Sem querer entrar na contenção (pertinente) de Carl Schmitt de serem os “conceitos” (ou símbolos?) políticos modernos uma secularização de conceitos teológicos, basta aqui aplicarmos a ideia de “mito público” de W. H. McNeill [Mythistory and Others Essays, Chicago: The University of Chicago Press, 1986, pp. 23-42] às diferentes representações dos contornos políticos das sociedades ao longo do tempo para percebermos que a suposta valência conceptual da laicidade é altamente questionável.

[10. A abrangência da categoria do «religioso» permite ver a pluralidade, mesmo quando ela não está nos discursos]

O que, para mim, está em causa é estudar-se o fenómeno da diferenciação religiosa em toda a sua abrangência. Sem os limites metodológicos que acantonam o fenómeno religioso a realidades satélites de determinadas instituições reconhecidas como religiosas, e só a essas, mas também sem aquilo que me parecem ser as distorções introduzidas pelas temáticas da secularização e da laicização. Isso é muito claro nas abordagens correntes da problemática da pluralidade, obviamente ligada ao fenómeno da diferenciação. É que a diferenciação – ou a emergência histórica da diferença – é uma característica permanente da realidade. Mesmo no âmbito religioso. Daí tratar-se de uma ilusão de óptica a ideia de que a diferenciação religiosa consistiria no estudo da emergência de um conjunto de fenómenos diferenciados em relação ao que se presume ser uma uniformidade preexistente. Essa uniformidade preexistente, que no caso português seria o catolicismo romano na sua estrutura dogmática e institucional, nunca existiu senão como projecto simbólico. O que muitos historiadores, antropólogos e sociólogos têm estudado sobre as vivências religiosas quotidianas, por exemplo, no âmbito da chamada religiosidade popular, devem ter-nos alertado para um importante facto: a história das instituições religiosas não esgota a realidade religiosa na história porque a adesão nominal a uma crença ou sistema de crenças esconde, nos indivíduos, uma real hierarquização de crenças, que é já uma situação íntima de “pluralidade”. O ambiente em que o indivíduo vive, nomeadamente o grau de regulação colectiva das crenças, é que potencia mais ou menos a expressão, exteriorização e desenvolvimento dessa pluralidade – e, portanto, a sua socialização.

A muito reflectida “homogeneidade” da sociedade portuguesa [por exemplo, Hermínio Martins, Classe, Status e Poder, Lisboa: I.C.S., 1998, pp. 99-131] resulta de uma centralização precoce, não só dos mecanismos políticos de controlo colectivo, mas também da alocação de recursos por essa estrutura central. As elites fizeram-se e mantêm-se na órbita dessa estrutura, para a administrar ou influenciar, mas a sua estratégia sempre foi a de enquadrar uma realidade muito mais vasta, dispersa e plural, que existia e existe. Por seu lado, ao conjunto da sociedade tem faltado a liberdade de iniciativa e de disponibilização dos recursos próprios para o investimento seguro e continuado que gera formas estruturadas, autónomas e duráveis de associação. Ora, no contexto desta realidade dúplice, a secularização e a laicização são interpretações que dizem respeito acima de tudo às elites e à estrutura central que exerce o controlo colectivo. Na realidade, a secularização e a laicização foram, em boa medida, auto-interpretações desse meio social restrito para descrever a desclericalização e a desconfessionalização do controle colectivo das crenças. Secularização e laicização têm sido a forma de dizer que aquele controlo colectivo e as elites que o exercem (ou concorrem para exercê-lo) arredaram um referente transcendente e confessional e passaram a pretender administrar a sociedade com outras referências simbólicas e que, por isso, fizeram incidir a regulação sobre outros aspectos da vida (da “história vivida”).

O paradigma historiográfico que é o nosso, centrado na vida política do Estado-nação, tem feito essencialmente a história desse esforço multissecular de centralização e administração. A consciência desta parcialidade do registo histórico e da sua linguagem é o que terá levado a um interesse acrescido das ciências sociais pelo estudo do quotidiano e das realidades não institucionais, encontrando-se assim um espaço de investigação e discurso historiográfico que evita ou pode evitar as sínteses feitas a partir das auto-interpretações vigentes entre as elites – nomeadamente as que circunscrevem o religioso ao institucional e pretendem subordinar a leitura da realidade aos paradigmas da secularização e da laicização. No patamar do quotidiano e do privado, a investigação sente-se coagida a reencontrar uma reflexão antropológica, que a parece empurrar para as categorias do religioso. E não deixa de ser curioso (e sintomático) que, por exemplo, a sociologia do quotidiano tenda para uma interpretação do comportamento humano a partir da lógica do religioso, já mesmo quando estuda um universo elitista como o meio… académico [José Machado Pais, Sociologia da Vida Quotidiana, Lisboa: I.C.S., 2002, pp. 37-53]; trata-se de um exercício que põe a nu as potencialidades, mas também a abrangência, desta perspectiva de análise do humano e do social.

[11. «Uniformidade» e «pluralidade» têm sido criações simbólicas]

Portugal tem alternado nos últimos duzentos anos entre paradigmas de uniformidade e de pluralidade, resultantes não só de diferenças conjunturais no controlo colectivo das crenças – em determinados períodos mais auto-limitado, noutros menos – mas também da projecção que as elites administradoras daquele controlo fazem sobre o País das suas concepções e representações da realidade social [L. A Santos, «O protestantismo em Portugal», cit., pp. 37-43]. Ora, a pluralidade tem derivado historicamente, aqui e em todo o lado, de cenários de controlo colectivo limitado (ou auto-limitado), mais do que da acção “mágica” das representações sociais e políticas criadas pelas elites, nomeadamente de modelos “seculares” (como demonstra a história norte-americana no século XIX). No caso português, a centralização já referida impediu que a pluralidade pudesse manifestar-se de forma ostensiva, organizada e auto-sustentada fora do meio restrito das elites – onde inegavelmente se vem manifestando há mais de duzentos anos, embora elas tenham um forte incentivo a manter uma unidade funcional expressa num “mito público”. Este mais não é que a expressão simbólica do modelo de Estado, que diz das finalidades deste e do desiderato colectivo que persegue: o regalismo católico do Estado absoluto e depois do Estado liberal, o nacionalismo democrático e depois autoritário, o projecto meio realizado de um Estado socialista e hoje talvez o Estado-providência (que, sendo já visto como a viabilização possível do moribundo nacionalismo autoritário, o veio também a ser do inviável projecto socialista que se chegou a esboçar como alternativa). Aliás, os momentos de ruptura política têm coincidido com as crises “religiosas” do Estado português, quando o “mito público” vigente perde eficácia perante as elites, em parte já mobilizadas por outras crenças. Assim, a diferenciação ocorre também neste nível e pode ser explorada como leitura possível da concorrência que sempre se deu e se dá no interior das elites.

[12. Um programa de trabalhos para a história da religião]

A história religiosa pode, pois, abranger no seu programa de trabalhos toda a realidade histórica, um pouco como a história económica o fez, impulsionada pelos contributos de Gary Becker [The Economic Approach to Human Behaviour, Chicago: The University of Chicago Press, 1976] e da teoria da Escolha Racional. O seu contributo para a renovação da investigação histórica, tanto pela abrangência do objecto de estudo quanto pela inovação metodológica, poderia ser considerável. Para tal, a história religiosa está particularmente vocacionada porque, provavelmente mais do que outras áreas de investigação histórica, tem vantagens muito evidentes em adoptar uma atitude interdisciplinar, necessitando da reflexão antropológica para construir o seu objecto de estudo, podendo afinar a sua conceptualização sobre o fenómeno religioso com os contributos mais relevantes da filosofia da religião, encontrando inspiração na aplicação que economistas e sociólogos têm feito de padrões teóricos de referência sobre o comportamento religioso dos agentes históricos, ou fazendo seus alguns importantes problemas colocados pela psicologia evolucionista herdeira de Carl Jung [ver, por exemplo, Anthony Stevens e John Price, Evolutionary Psychiatry: A New Beginning, Londres: Routledge, 1996]. Tais potencialidades são tanto mais evidentes quanto, em relação às suas mais directas concorrentes – a ciência das religiões e a sociologia religiosa – a história religiosa tem a seu favor o método diacrónico dos historiadores e, por isso, a nossa convicção fundacional de que a realidade que tentamos apreender se fez no tempo e só dessa forma deve ser estudada, se quisermos evitar uma certa unidimensionalidade e o carácter um tanto ou quanto redutor da sincronia de outras abordagens disciplinares nas ciências sociais e humanas.

Lisboa, 19 de Novembro de 2006

terça-feira, agosto 14, 2007

Ouro, papel e prudência


I. Chris Laird, em Money Market Funds and Other Implications of the Credit Crisis, faz justiça ao seu pseudónimo de "esquilo prudente". Não se trata de ignorar a lição da parábola dos talentos, trata-se de estar consciente que a parábola fala de talentos, não de papel. Sobretudo se se tratar daqueles que estão preocupados com os anos da velhice.

II. Se crescer o recurso ao ouro como investimento, é provável que a sua transacção volte a ser taxada na Zona Euro. E, se a crise for profunda, não é impossível que se inventem formas de taxar a mera posse do metal (tal como se taxa a posse de imóveis). Por agora, a ideia de associar a prudência ao ouro parece amplamente válida. Lidar com tentativas futuras de extorsão pseudo-legal já é outra conversa.

segunda-feira, agosto 13, 2007

O estranho modo como o Fed inflacionou


Se continua a desesperar com a ignorância dos comentadores económicos na imprensa e na televisão perante o reflexo da crise do crédito imobiliário nos Estados Unidos, um artigo como este pode ajudá-lo. Em "The Fed bought what?", Paul Koning chama atenção para um pormenor importante que tem andado a escapar aos comentadores (o que não me surpreende):

"What is significant about Friday's repurchase agreements is not so much their size, but the securities that the Fed exchanged for money: mortgage-backed securities (MBS). Indeed, the entire $38 billion dollar injection went to MBS purchases, the largest open market purchase of this asset type ever conducted by the Fed, smashing the previous record of $8.6 billion set back in September of 2005."

Se quiser definitivamente perceber o que se está a passar, tem de munir-se da única teoria lógica do ciclo económico; é o que George Reisman faz neste artigo ("The Housing Bubble and the Credit Crunch").

Dossier C. S. Lewis


O Portal Evangélico da AEP disponibiliza este interessante dossier sobre um dos autores cristãos fundamentais do século passado.

Agradecimento

Obrigado ao Eclético pela simpática referência (as férias não foram tão longe como Regina e Jobim fariam pressupor, mas meteram areia e mar certamente). Quanto aos costados e aos ossos, aqui, de facto, gosta-se de algumas velharias viçosas, como a do bom Seabra.

domingo, agosto 12, 2007

Governo, banco central e crise do mercado imobiliário

A recentíssima crise no mercado imobiliário norte-americano, com previsíveis consequências no mercado global e na política monetária dos principais bancos centrais, está a mostrar como a generalidade dos comentadores económicos na imprensa tem uma grande tendência para "acertar" ao lado quando tenta analisar o funcionamento do mercado (neste caso, o norte-americano). Parece ser assumido que aquele funciona livremente e sem as peias e as distorções da regulação dos governos e da intervenção a priori das "autoridades" monetárias. Daí resultam análises sem sentido, que tentam encontrar no próprio mercado explicações para fenómenos que, na realidade, têm causas exógenas (a intervenção dos Estados e dos seus bancos centrais). A injecção de dinheiro "fresco" nas instituições bancárias em crise pela Reserva Federal Norte-Americana e pelo Banco Central Europeu é uma "correcção" desastrosa (e inflacionista) de erros de investimento que já tinham sido causados pela intervenção dos governos e dos bancos centrais neste mercado; esta é a fase em que todos vamos começar a pagar (em dinheiro de valor ainda mais depreciado) as opções que há uns anos pretenderam "fomentar" este mercado com razões políticas e não económicas (isto é, ao arrepio do que era sensato em termos económicos).

Há quase seis anos que uma das publicações do Ludwig von Mises Institute já vinha chamando atenção para o que estava errado neste mercado. Para os eternos distraídos nas questões económicas, a análise "austríaca" talvez tenha algo de importante a dizer sobre este assunto. Aqui ficam, das minhas notas, os resumos do que dois artigos (de 2001 e 2002) já previam que acontecesse (quando a opinião dominante era arrogantemente optimista):

THE FREE MARKET vol. 19, n.º 10, Outubro 2001: p. 6 David Barnes, «The redistribution of risk». O autor critica a acção da Federal National Mortgage Association, conhecida como Fannie Mae, e da Federal Home Loan Mortgage Corporation, ou Freddie Mac; ambas as agências são consideradas em geral GSEs, government sponsored enterprises, supostamente fornecendo liquidez e alternativas “baratas” ao mercado imobiliário, mas o efeito da sua operação subsidiada pelos contribuintes, as isenções de impostos e o acesso a uma linha de crédito de emergência de $2.25 milhões significam que o risco da sua actividade é transferido dos cofres destas agências para os Americanos anónimos, enquanto a concorrência tem de fazer face a esses riscos com os seus recursos; o autor argumenta que se trata de uma política de “redistribuição” do risco, que obedece à lógica da “redistribuição” da riqueza que tem justificado estas agências desde o New Deal com o alegado propósito de “salvar o capitalismo de si mesmo”. «The real danger of government’s protection of Fannie Mae and Freddie Mac is to the American taxpayer»; «The redistribution of risk is as contemptible as the direct redistribution of wealth through taxation»).

THE FREE MARKET vol. 20, n.º 3, Março 2002: p. 1 Christopher Mayer, «Mortgage-market socialism» Mayer traz de novo o tema das nocivas aventuras de Fannie Mae, Freddie Mac e do Federal Home Loan Bank System, as três infelizmente famosas GSEs (empresas subsidiadas) do imobiliário: ver vol. 19 n.º 10; a sua fatia do mercado de empréstimos imobiliários já chega a 56% e o crescimento acelerado desta percentagem nos últimos anos faz acreditar que se está na iminência de uma monopolização politicamente patrocinada deste sector; os riscos desta situação decorrem da possibilidade destes gigantes poderem vir a ter problemas financeiros (algo que os seus responsáveis afastam com um irracional excesso de confiança), afectando então a vida de milhões de pessoas – as atraídas pelos preços subsidiados ou a generalidade dos contribuintes se o Governo decidisse evitar o afundamento desta tríade (as vantagens que o Governo já lhes dá relativamente à concorrência são: disponibilidade de linhas de crédito do Tesouro, isenções fiscais e tratamento privilegiado no acesso ao crédito bancário, com regras mais generosas do que as que são impostas pela lei à concorrência); isto não só não as impede de serem das empresas mais endividadas dos Estados Unidos como provavelmente as estimula a isso, dado terem uma indefinida garantia do Estado por trás; tal endividamento faz adivinhar no futuro próximo ou um desastre financeiro ou uma nacionalização que evite a liquidação destes gigantes – o certo é que, quando isso acontecer, o “funcionamento do mercado” há-de ser mais uma vez responsabilizado por algo que evidentemente resulta do pernicioso intervencionismo estatal nesse mercado. «We do not know how the mortgage market might have developed if the GSEs had never been created»; «The only way to correct this problem is the same way all socialist practices are corrected – government involvement must be severed completely».

quinta-feira, agosto 02, 2007

No ano do Código Civil do visconde de Seabra...


Lei de 1 de Julho de 1867 que aboliu a pena de morte em Portugal. Esta lei e o novo Código (coroa de glória do liberalismo jurídico português) foram promulgados no mesmo dia pelo rei D. Luís I. (Imagem via Lusitana Antiga Liberdade.)

Os direitos dinásticos do senhor D. Duarte Pio


Com a devida vénia ao blogue associado ao melhor sítio monárquico da rede, destaco este texto de Augusto Ferreira do Amaral sobre os direitos dinásticos do senhor D. Duarte Pio (em boa medida coincidentes com o que o L&LP tem vindo a defender). Na caixa de comentários àquele texto, chamo atenção para a correcção das observações feitas a um leitor por José Manuel Quintas, de que cito este excerto:

"Ao insistir em afirmar que o Senhor Dom Duarte não tem qualidades carismáticas para a representação da Instituição Real, devendo por isso ser escolhido outro “pretendente”, o sr. não está a excluir Dom Duarte da sucessão régia. Está, simplesmente, a excluir-se a si mesmo do ideário monárquico.

A Instituição Real, que tal como a Instituição Municipal tem características tais que até parece ter saído directamente das mãos de Deus – é uma Instituição com prestígio e força bastante para poder ser servida por homens comuns, ao serviço de homens comuns. A força da Realeza não reside em qualquer carisma pessoal, sempre transitório e efémero. A sua força está na sucessão hereditária que, ao anular as rivalidades electivas na chefia do Estado, anula a ameaça de desagregação de pátrias incipientes ou enfraquecidas pela cobiça de povos mais poderosos.

A circunstância de termos hoje garantida a personificação da Família Dinástica, amplamente reconhecida interna e externamente, é um supremo bem para Portugal. E nem sempre assim foi ao longo da nossa longa História."