terça-feira, junho 05, 2007

O Eça mais lúcido...


Eça de Queirós, o magnífico ficcionista, deu-nos leituras ácidas do Portugal do seu tempo, contribuindo (ele sabia-o) para o clima de opinião que aqui lamenta. Neste excerto do seu conto A Catástrofe (Lisboa sob ocupação estrangeira no advento do século XX), usa a ficção para exprimir a maior lucidez que lhe veio nos seus últimos anos. Lê-se num fôlego e permite pensar que, de certo modo, essa "ocupação" veio, toda portuguesa no entanto, e com... a república de 1910!

Mas de que vale agora pensar no que se podia ter feito!.. O nosso grande mal foi o abatimento, a inércia em que tinham caído as almas! Houve ainda algum tempo em que se atribuiu todo o mal ao Governo! Acusação grotesca que ninguém hoje ousaria repetir.

Os Governos! Podiam ter criado, é certo, mais artilharia, mais ambulâncias; mas o que eles não podiam criar era uma alma enérgica ao País! Tínhamos caído numa indiferença, num cepticismo imbecil, num desdém de toda a ideia, numa repugnância de todo o esforço, numa anulação de toda a vontade... Estávamos caquéticos!

O Governo, a Constituição, a própria Carta tão escarnecida, dera-nos tudo o que nos podia dar: uma liberdade ampla. Era ao abrigo dessa liberdade que a Pátria, a massa dos portugueses tinha o dever de tornar o seu País próspero, vivo, forte, digno da independência. O Governo! O País esperava dele aquilo que devia tirar de si mesmo, pedindo ao Governo que fizesse tudo o que lhe competia a ele mesmo fazer!... Queria que o Governo lhe arroteasse as terras, que o Governo criasse a sua indústria, que o Governo escrevesse os seus livros, que o Governo alimentasse os seus filhos, que o Governo erguesse os seus edifícios, que o Governo lhe desse a ideia do seu Deus!

Sempre o Governo! O Governo devia ser o agricultor, o industrial, o comerciante, o filósofo, o sacerdote, o pintor, o arquitecto – tudo! Quando um país abdica assim nas mãos dum governo toda a sua iniciativa, e cruza os braços esperando que a civilização lhe cai feita das secretarias, como a luz lhe vem do Sol, esse país está mal: as almas perdem o vigor, os braços perdem o hábito do trabalho, a consciência perde a regra, o cérebro perde a acção. E como o governo lá está para fazer tudo – o país estira-se ao sol e acomoda-se para dormir. Mas, quando acorda – é como nós acordámos com uma sentinela estrangeira à porta do Arsenal!

Ah! Se nós tivéssemos sabido!

Mas sabemos agora! Esta cidade, hoje, parece outra. Já não é aquela multidão abatida e fúnebre, apinhada no Rossio, nas vésperas da catástrofe. Hoje, vê-se nas atitudes, nos modos, uma decisão. Cada olhar brilha dum fogo contido, mas valente; e os peitos levantam-se como se verdadeiramente contivessem um coração! Já não se vê pela cidade aquela vadiagem torpe: cada um tem a ocupação dum alto dever a cumprir.

As mulheres parecem ter sentido a sua responsabilidade, e são mães, porque têm o dever de preparar cidadãos. Agora trabalhamos. Agora, lemos a nossa história, e as próprias fachadas das casas já não têm aquela feição estúpida de faces sem ideias, porque, agora, por trás da cada vidraça, se pressente uma família unida, organizando-se fortemente.

Por mim, todos os dias levo os meus filhos à janela, tomo-os sobre os joelhos e mostro-lhes a SENTINELA! Mostro-lha, passeando devagar, de guarita em guarita, na sombra que faz o edifício ao cálido sol de Julho e embebo-os do horror, do ódio daquele soldado estrangeiro...

Conto-lhes então os detalhes da invasão, as desgraças, os episódios temerosos, os capítulos sanguinolentos da sinistra história... Depois aponto-lhes o futuro – e faço-lhes desejar ardentemente o dia em que, desta casa que habitam, desta janela, vejam, sobre a terra de Portugal, passear outra vez uma sentinela portuguesa! E, para isso, mostro-lhes o caminho seguro – aquele que nós devíamos ter seguido: trabalhar, crer, e, sendo pequenos pelo território, sermos grandes pela actividade, pela liberdade, pela ciência, pela coragem, pela força de alma... E acostumo-os a amar a Pátria, em vez de a desprezarem, como nós fizéramos outrora.

Como me lembro! íamos para os cafés, para o Grémio, traçar a perna, e entre duas fumaças, dizer indolentemente:
– Isto é uma choldra! Isto está perdido! Isto está aqui, está nas mãos dos outros!...

E em lugar de nos esforçarmos por salvar "isto" pedíamos mais conhaque e partíamos para o lupanar.

Ah! geração covarde, foste bem castigada!...

Mas agora, esta geração nova é doutra gente. Esta já não diz que "isto" está perdido: cala-se e espera; se não está animada, está concentrada...

E depois, nem tudo são tristezas: também temos as nossas festas! E para festa, tudo nos serve: o 1º de Dezembro, a outorga da Carta, o 24 de Julho, qualquer coisa, contando que celebre uma data nacional. Não em público – ainda o não podemos fazer – mas cada um na sua casa, à sua mesa. Nesses dias colocam-se mais flores nos vasos, decora-se o lustre com verduras, põe –se em evidência a linda velha Bandeira, as Quinas de que sorríamos e que hoje nos enternecem – e depois, todos em família cantamos em surdina, para não cha mar a atenção dos espias, o velho hino, o Hino da Carta... E faz-se uma grande saúde a um futuro melhor!

E há uma consolação, uma alegria íntima, em pensar que à mesma hora, por quase todos os prédios da cidade, a geração que se prepara está celebrando, no mistério das suas salas, dum mundo quase religioso, as antigas festas da Pátria!